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:: 16/jul/2022 . 1:23

OS QUILOMBOS E OS CAPITÃES DO MATO

A palavra kilombo, no português quilombo, vem do quicondo e do quimbundo, línguas faladas na África Central. Significa acampamento, arraial, união ou cabana. Entre os povos imbangalas de Angola, indicava sociedade guerreira de rigorosa disciplina militar. No Brasil virou sinônimo de reduto de escravos fugitivos, chamado de mocambo.

Em “Escravidão”, segundo volume da trilogia do jornalista e escritor Laurentino Gomes, no capítulo “Fugitivos e Rebeldes”, ele começa a descrever sobre o Quilombo de Cruz da Menina, na Serra da Borborema, no agreste da Paraíba. Na produção do açúcar e do café, todos cativos chegaram ali por volta do final do século XVIII e início do XIX.

COMUNIDADE FEMININA

O nome foi dado em memória de uma menina branca de nome Dulce, filha de retirantes da grande seca de 1876, que ali teria morrido de sede. Para trás ficou uma comunidade feminina e matriarcal. Restou a essas mulheres fortes a tarefa de cuidar dos filhos e sozinhas enfrentar os desafios da vida.

Laurentino ressalta que história semelhante pode ser observada no município vizinho de Alagoa Grande, terra do cantor e compositor Jackson do Pandeiro. Na mesma Serra, a comunidade quilombola de Caiana dos Crioulos se dividiu em duas em razão da seca.

Uma parte dela permaneceu ali e a outra metade urbana e masculina em Pedras de Guaratiba, zona oeste do Rio de Janeiro. As duas mantêm intenso intercâmbio.  No início de 2020, as mulheres de Caiana, depois de muitas lutas, conseguiram o reconhecimento e a titulação de suas terras, coisa que não ocorreu com Cruz da Menina.

Herança do sistema escravista, como diz o escritor, atualmente existem milhares de quilombos espalhados pelo Brasil. Em 2019 era 3.212 certificados pela Fundação Palmares. “Com 1,2 milhão de moradores, dos quais 75% em estado de pobreza extrema, os quilombos ocupam uma área de 1,2 milhão de hectares.

A soma de todos quilombos, segundo Laurentino, resulta numa área inferior à ocupada pelas dez maiores propriedades do agronegócio do país. A fazenda Piratininga, entre Tocantins, Goiás e Mato Grosso, se estende por 135 mil hectares.

ORELHAS CORTADAS

Durante a escravidão, a violência contra os quilombos pode ser medida através dos relatos dos historiadores. Um deles conta que, ao retornar a São Paulo, em 1751, depois de atacar inúmeros redutos numa região de Minas Gerais e Goiás, o bandeirante Bartolomeu Bueno do Prado levava como troféu colares com 3.900 pares de orelhas cortadas. Pelas leis portuguesas, o corte da orelha era uma das punições previstas para os fugitivos.

De acordo com o autor de “Escravidão”, o Código Negro, do governo francês, de 1768, estabelecia que na colônia de São Domingos (Haiti), escravos ausentes por mais de quatro dias seriam submetidos a 50 chibatadas e ficariam amarrados no tronco até o pôr-do-sol. Oito dias de ausência, 100 chibatadas e o uso de uma corrente amarrada a um peso de ferro de dez quilos por dois meses.

Na Louisiana (EUA), os fugitivos tinham as orelhas cortadas e costas marcadas a ferro quente. Três fugas resultariam em sentença de morte. No Suriname, um cativo recapturado depois de algumas semanas de fuga poderia ter o tendão de Aquiles cortado ou amputação da perna direita. Proposta semelhante chegou ao Brasil, mas não foi adotada.

Em 1719, o conde de Assumar, governador de Minas Gerais, tentou implantar a pena de morte, mas não conseguiu. A medida acarretaria prejuízos para os mineradores. Para o escravismo, era melhor um escravo fugitivo do que um escravo morto, conforme assinala o historiador Carlos Magno Guimarães.  Também, a Câmara de Mariana, em 1755, propôs cortar o tendão de Aquiles. O conde dos Arcos surpreendeu contestando ser uma tirania e condenou as sevícias dos donos dos escravos.

De todos os quilombos, o que mais resistiu foi o de Palmares, na Serra da Barriga, estado de Alagoas. Lutou durante mais de um século contra portugueses e holandeses até a morte do seu último líder Zumbi, em 20 de novembro de 1695. Entre os séculos XVIII e XIX surgiram milhares, inclusive em regiões mais distantes, como na Amazônia. Outros funcionavam em áreas próximas às cidades, como na floresta da Tijuca (Rio de Janeiro) e Quilombo do Jabaquara (São Paulo).

No Grão-Pará e Maranhão existiram cerca de 80, entre 1734 e 1816. Em Minas Gerais 160 no século XVIII. Alguns eram grandes comunidades, como Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande), em Minas Gerais, na região de Araxá, atacado por duas expedições (1746-1759). Chegou a reunir mil cativos. Foi descrito como quase reino por Bartolomeu Bueno.

Em Mato Grosso, o Quilombo do Quariterê (1730), resistiu durante mais de meio século e reuniu 79 negros e 30 índios, sob o governo de um rei e uma rainha. Ainda em Mato Grosso, o de Vila Maria chegou a abrigar 200 negros armados. “Na defesa de seus redutos, os quilombolas seguiam estratégias de disciplina militar, desenvolvida na África (Angola, Congo, Nigéria). No quilombo Buraco do Tatu, nas vizinhanças de Salvador e destruído em 1763, os esquemas de defesa eram africanos, com trincheiras cavadas ao chão e cobertas com estrepes de madeiras pontiagudos.

Houve um grande quilombo na bacia do rio Trombetas, afluente do Amazonas. Um relatório dizia que teve dois mil habitantes. Os cativos chegaram a essa região por volta de 1780 nas fazendas de gado e cacau.  O reduto foi atacado em 1823, mas tempos depois foi reativado e deu origem a outros, mantendo relações abertas com o mercado de brancos, aldeias indígenas e exportação de cacau.

Na descrição do historiador Flávio dos Santos Gomes, fugas e quilombos aumentavam mais em períodos de guerras, caso dos holandeses e portugueses que deram alento a Palmares, e divergências entre os brancos. O mesmo fenômeno pode ser observado na primeira metade do século XIX nos conflitos Cabanagem (Pará), Balaiada (Maranhão), Revolução do Cabanos (Pernambuco e Alagoas), Farroupilha (Rio Grande do Sul). No Maranhão, o quilombo Campo Grande mobilizou um exército de três mil ex-escravos para participar da Balaiada.

A repressão das autoridades era implacável. Governadores reclamavam dos contínuos delitos cometidos por bastardos (brancos pobres fora da lei), carijós (índios), mulatos e negros. Em Minas Gerais foi proposto a pena de morte para combater as quadrilhas de salteadores. O governador de Minas temia que seu território poderia se transformar num Palmares. Ele dizia que os quilombos eram pequenos estados ou reinos organizados à maneira africana. Em Campo Grande haviam mais de 600 negros, com rei e rainha. As referências a reis e rainhas apareciam em diversos relatórios.

No Mato Grosso, entre 1770 e 1795, existiu também o Quilombo da Carlota, governado por uma mulher, em homenagem à princesa Carlota Joaquina, mulher de D. João VI.

Um caso interessante narrado por Laurentino, seguido de negociação (espécie de greve) ocorreu no final do século XVIII, em Ilhéus, com o engenho Santana, fundado no século XVI, com 300 cativos. Em 1789, um grupo de escravos, sob a liderança de Gregório Luis, fugiu depois de matar o mestre de açúcar. O engenho ficou parado durante dois anos. Sob pressão das autoridades, os fugitivos decidiram propor um tratado de paz ao dono do engenho, listando dezenas de reivindicações. Trata-se de um caso raro onde os escravos falavam sobre as condições em que viviam no cativeiro, desejos e expectativas.

Treze das demandas se referiam às condições de trabalho e pediam redução de 30% da cota diária de cana obrigados a corta. Outras reivindicações falavam de folgas semanais e ao direito de revender no mercado o que produzissem através de seus meios. Queriam também jogar, descansar, cantar e dançar.

Nessas condições de escravos, se mostraram dispostos a retornar ao engenho. Exigiam apenas que os antigos feitores fossem demitidos e novos fossem eleitos mediante aprovação deles. O dono do engenho Manuel da Silva Ferreira fingiu aceitar as propostas, mas os traiu, prendendo o Gregório e vendeu os demais para o Maranhão.

No entanto, um caso bem-sucedido aconteceu em 1800, na antiga capitania do Espírito Santo, onde muitas áreas estavam infestadas de quilombos (300 fugitivos). O governador Silva Pontes dispunha de uma tropa de 100 homens, mesmo assim decidiu negociar. Deu um prazo de 30 dias para os fugitivos retornarem. Em troca seriam anistiados. O plano funcionou.





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