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:: 16/fev/2022 . 2:49

CONVERSAS ENTRE COMADRES E O COTIDIANO NUM POSTO DE SAÚDE

Ir a um consultório médico particular para uma consulta já não é nada agradável. Primeiro você é tratado como paciente, porque haja paciência para esperar! Agora, imagine num posto público de saúde onde você escuta papos absurdos que não gostaria de ouvir, principalmente nesses tempos pandêmicos e negacionistas! Como a maioria dos brasileiros, meu plano é o SUS, meu amigo! Só isso basta!

Logo cedo, entre seis e sete horas da manhã passo pela recepção que me coloca numa triagem na sala de uma enfermeira, para depois aguardar o médico que está marcado para chegar às nove horas, mas só começa a fazer as chamadas depois das dez. Não adianta esquentar a cabeça, ou reclamar.

Minha pressão registrou certa alteração no aparelho. Os números não mentem. Não dou muita importância. Depois normaliza. Sempre levo um livro para passar o tempo e me acalmar, mas com os ouvidos (um não estava bem) atentos aos movimentos e às conversas que rolam. Vício de jornalista.

Não existe o devido distanciamento, e logo o posto vira uma aglomeração de entra e sai de funcionários por salas diferentes e usuários misturados com o local de vacinação. O sistema é bruto!

É um tal de entrar e sair das portas que até me dá uma agonia. É muito papel e burocracia! Sento numa fileira de cadeiras vazias e abro o livro para minha leitura. Não demora muito e duas senhoras sentam ao meu lado. Fico prensado ao meio. Elas percebem que não estou para conversa, mas sinto que vai sair resenha. Uma me pergunta se vou ao médico. Respondo laconicamente que sim.

– O calor está demais, né comadre, e pior ainda para a gente nessa idade da menopausa. É uma quentura por dentro! Fale não, comadre – diz uma para outra. Dá vontade de rir, mas continuo calado, lendo meu livro. Lá se foi minha concentração! Penso comigo: Vem mais coisa por aí.

– Comadre, essas vacinas não servem pra nada! É coisa de político, peixe grande entre eles! Olha comadre, minha avó de 80 anos tomou a vacina e até hoje está com o braço duro. Conheço uma pessoa que se vacinou e logo depois teve um infarto. Essas vacinas estão matando gente!

– É comadre, sei de dois conhecidos que receberam as duas doses e pegaram a danada da covid – responde a outra, para acrescentar que um não teve muitos problemas de saúde, mas o outro, que sofria de diabetes, foi internado. Deu vontade de contra-argumentar, mas recuo. Melhor não!

– Só Deus, comadre, porque essas vacinas não valem nada! Começo a ficar irritado com os absurdos negacionistas. Lembro do Bozó, mas procuro me controlar e me agarrar ao meu sábio silêncio. Pensei em sair do lugar, mas seria falta de educação, e poderia até ser recriminado com palavrões.

– Onde já se viu, comadre, esse pessoal do governo do estado pedir cartão de vacinação para entrar numa repartição! Isso tá fora da lei – protestou. Não aceite isso comadre!

O funcionário do posto foi até a fila de vacinação para tentar manter uma certa distância entre as pessoas, mas não estava sendo compreendido. Resistência!  Um cara foi logo dizendo que não ia sair dali. Não se sabe no que deu nesse povo. Deve ter sido a infiltração do mau exemplo que vem lá de cima do capitão-presidente.

– Tá vendo aí, não adianta comadre, junto ou separado, a covid pega do mesmo jeito – apontou a comadre ao lado para o agente de saúde que estava procurando colocar ordem na fila, para evitar ajuntamento.

Nem percebi, e logo as duas se foram. Ah, uma foi para o dentista. A outra conversadeira, nem sei. Que alívio! Estou livre das barbaridades! Meu ouvido esquerdo começa a zunir. Ele está entupido e surdo, mas o outro ainda está funcionando. Deu para captar as conversas atravessadas.

Olho o relógio, e os ponteiros marcam próximos das dez horas. O tempo não para. Estava impaciente, decidido a ir embora. Nisso, passa a enfermeira e pergunto quando o médico, ou a média, ia me chamar.

– Tenha paciência, meu senhor! Não vai demorar! Já estava ali há mais de três horas, e nada. Dei uma pausa na leitura. Passa um rapaz, visivelmente homossexual, esbanjando sua descontração de não paciente sisudo como eu, e diz que meu livro é bonito. Pela capa (o livro estava fechado em minha mão) ele viu que era “Escravidão”, de Laurentino Gomes. Pensei em responder que não existe livro bonito, mas bom ou mal escrito.

Levantei um pouco para esticar as pernas. O rapaz, que depois descobri, foi lá para se vacinar, e não demonstrava muita preocupação com os problemas da vida. Senta no mesmo lugar em que estava e toca a ligar. Corri as vistas, e observei que a maioria conduzia um celular na mão. O jovem parecia falar com a mãe, uma tia ou com a avó.

No meio da conversa, contou que no colégio, ou faculdade, entrou no banheiro das mulheres por engano. Isso levou uns três ou cinco minutos para explicar sobre aqueles desenhos-letreiros de feminino e masculino que colocam nas portas dos sanitários. Tem símbolos confusos e até em inglês. Melhor falar toilette, que fica mais civilizado e bacana.

Como seu argumento de ter adentrado no banheiro feminino por equívoco não convenceu, o rapaz levantou-se, foi até a porta dos sanitários do posto de saúde, e tirou uma foto para enviar. Hoje a tecnologia oferece essa rapidez através da imagem virtual. O processo é instantâneo. Do outro lado, a mulher disse que não estava podendo abrir o arquivo. Percebi que o moço ficou desapontado. Pela conversa, supus que a pessoa estava internada em algum hospital.

Confesso, e bem sabe quem conhece meu temperamento, que não estava mais suportando ficar mais ali. A decisão era desistir da consulta, mas, para minha sorte, a médica, finalmente, me chamou. Já eram dez e meia.

Sai dali pensando um monte de coisas, como na ignorância do nosso sofrido povo, nas questões sociais de tantas desigualdades, num Brasil ainda atrasado que pouco cuida dos seus filhos, nessa pandemia que parece não mais se acabar, na minha própria impotência como cidadão e nessa outra pandemia da tal fake news que se alastrou por todo país, tirando a vida de muita gente.

 





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