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:: 29/maio/2021 . 0:08

“A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER” (Parte II)

O AMOR NA GUERRA, AS TORTURAS E OS ESTUPROS

Os depoimentos em forma de entrevistas com as mulheres que lutaram durante a II Guerra Mundial – a Guerra Patriótica para os russos – são chocantes, e num dos capítulos do livro “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”, a escritora Svetlana Aleksiévitch, fala da guerra e do amor, com impressionantes histórias que mais parecem filmes de ficção.

Em outras passagens, ela relata testemunhas que foram torturadas pela Gestapo de Hitler, dos prisioneiros russos que eram considerados como traidores por Stalin, e terminavam em campos de trabalhos forçados. Em terras alemãs, a caminho da vitória final, o ódio se mistura com a compaixão. Os estupros contra as mulheres foram inevitáveis dos dois lados, com a justificativa de que os soldados passavam muito tempo sem sexo, numa guerra de muitas atrocidades.

“O amor é o único acontecimento pessoal da guerra. Todo o resto é coletivo – até a morte” – ressalta a escritora em sua obra. Conta que, para sua surpresa, as mulheres que participaram da guerra falassem de forma menos franca do que sobre a morte. “Elas se defendiam das ofensas e das calúnias”.

De uma testemunha, “a guerra tirou o meu amor de mim… meu único amor”. Em terras alemãs, em algum povoado, ela conta que viu duas alemãs sentadas no pátio, com suas toquinhas, bebendo café, como se não estivesse acontecendo guerra nenhuma. Pensei: “Meu Deus, do nosso lado está tudo em ruínas, nossa gente está vivendo debaixo da terra, comendo grama…”

“Saídos, não sei de onde, dois prisioneiros alemães se aproximaram de nós e começaram a pedir para comer. Pegamos uma bisnaga de pão, partimos e demos a eles. Um dos nossos soldados comentou: Veja quanto pão as médicas deram para o nosso inimigo. Será que elas sabem o que é a guerra de verdade, ficam só nos hospitais de onde vieram. Depois, eles mesmos temperaram o mingau com sal e deram para eles em latas de conserva.  Esta é a alma do soldado russo”.

Depois de se alistar e tirar sua carteirinha de militar, uma capitã médica contou que ela e seu marido foram juntos para o front. Tinham saído em grupo para uma prospecção. “Esperamos dois dias… Eu não dormi por dois dias… Então cochilei… Acordei com ele sentado ao meu lado, olhando para mim. Durma. Fico com pena de dormir.”

“Estávamos atravessando a Prússia Oriental, e todos já estavam falando em vitória. Ele morreu por estilhaços. Eu o abracei e não deixei que o levassem para enterrar. Na guerra faziam os enterros logo em seguida. Às vezes só com areia seca que sacudia e se movia. Para mim, ainda havia gente viva”. Ela, então, lutou para que ele não fosse enterrado ali. Queria ter ainda uma noite deitada ao seu lado.

“De manhã, decidi que o levaria para casa. Todos achavam que eu tinha ficado louca de tanta dor. A testemunha narra que foi de um general a outro para que o corpo do seu marido fosse levado para sua terra natal. Assim, terminou chegando ao comandante. Ela implorou e, se fosse possível ficaria de joelhos. De tanto insistir, deram um avião especial por uma noite, para que seu marido fosse enterrado a milhares de quilômetros de distância.

Em outro caso, a escritora entrevistou uma sargento fuzileira que foi obrigada a se separar do marido durante a guerra. Ela foi para um front e ele para outro. Ela, então, passou a procurá-lo sem parar em todos lugares. “Estava determinada: “Se o encontrasse sem braços, sem pernas, inválido, eu o pegaria e levaria para casa imediatamente. Viveríamos de alguma forma”.

Quando começou a procurar o marido, ela não sabia nem o que era um front. Nisso, recebeu uma carta do marido, e fazia dois anos que não sabia nada dele. Em todos locais por onde chegava, ela pedia que a mandassem para onde estava seu marido, até que alguém o localizou. “Está louca, o lugar onde está seu marido é muito perigoso”.

“Fiquei sentada, chorando, e então ele se compadeceu e me deu uma autorização. Ele me pôs num carro e fui. Quando cheguei na unidade, todos se surpreenderam. Todos à minha volta eram militares”. Para conseguir, ela disse que era sua irmã. Andou seis quilômetros até chegar onde estava seu marido Fodossenko.

Ele estava na linha de frente, e um colega lhe avisou que sua irmã, uma ruiva, estava lhe procurando. Só que a irmã dele era morena. Mesmo assim, Fodossenko apareceu, “e então nos reencontramos”. Depois deram uma declaração que a esposa encontrou seu marido na trincheira, que é esposa legítima e tem documentos. Todos queriam ver que mulher era aquela tão destemida e corajosa.

“Vou me lembrar daquela noite pelo resto da minha vida. Me alistaram como auxiliar de enfermagem. Eu ia com ele nas missões de reconhecimento. Um morteiro atirava, eu via que ele tinha caído. Pensava: Está morto ou ferido. Corria para lá, o morteiro atirava, e o comandante dizia: Para onde está indo, mulher dos demônios? Me deram a Ordem do Estandarte Vermelho. No dia seguinte, meu marido foi ferido gravemente. Corríamos juntos, nos arrastávamos juntos. As metralhadoras atiravam, atiravam. Ele foi ferido por uma bala explosiva. Acompanhei meu marido até o hospital.

O médico se aproximou e disse que ele havia morrido. Respondi: “Quieto, ele ainda está vivo. Meu marido abriu os olhos e disse: O teto ficou azul. O vizinho de cama disse; “Fedossenko, se você sobreviver, deve carregar sua mulher nos braços”. “Não sei, talvez ele sentisse que estava morrendo, porque pegou minha mão, se inclinou e beijou. Como se beija pela última vez. Eu queria morrer, mas sob o coração carregava nosso filho, e só isso me fez aguentar…”

 





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