Depois da Inquisição, iniciada no século XII, e da Reforma há mais de 500 anos, a Igreja Católica Apostólica Roma volta a protagonizar e a vivenciar sua maior crise de sua história contemporânea, com os escândalos de pedofilia (abusos sexuais de crianças e menores), atos de corrupção (desvios de recursos), resistências e divisões às mudanças em seu seio, intrigas no poder e muita hipocrisia dos prelados, padres, bispos e cardeais homofóbicos e, ao mesmo tempo, homossexuais dentro e fora da Cúria.

Sem o sentido de ódio e declarando não ser, em momento nenhum, anticlerical, o escritor Frédéric Martel publicou o best-seller do New York Times, “No Armário do Vaticano – Poder, Hipocrisia e Homossexualidade” (Editora Objetiva), uma verdadeira devassa explícita das práticas abusivas e escandalizantes perpetradas, principalmente, pelos homens homofóbicos e retrógrados que cercaram e serviram aos papados de João Paulo II e Bento XVI, este o maior inquisidor dos tempos modernos, que fracassou em todos os seus movimentos antigays, contra os casamentos homossexuais e o aborto.

Ler o livro “No Armário do Vaticano” é entrar e conhecer as entranhas dos “pecados”, das mazelas e traições cometidos pelos que se dizem representante de Cristo e da Igreja na terra. É vivenciar de perto a prior crise de sua história depois da Reforma. É acompanhar a decadência e sentir a morte lenta da Igreja, a partir de personagens terríveis, promíscuos e hipócritas, como o Ângelo Sodano, o padre Macial Maciel, Tarcísio Bertone, Afonso Lopez Trujillo que chegou a fazer acordos com narcotraficantes, entregando sacerdotes para o sacrifício e torturas, entre tantos outros, que deixam católicos estarrecidos, envergonhados e revoltados. São verdadeiros desvirtuadores da doutrina cristã.

CONTRA O CELIBATO

O cardeal Ratzinger (Bento XVI), por muito tempo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Inquisição), sentenciou e humilhou com castigos vários padres por suas ideias mais avançadas (Teologia da Libertação), como o peruano Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff e o frei Beto. Cercado de homofóbicos, como o cardeal Sarah (livro contra o celibato), colocou a Igreja numa rota de colisão com os movimentos LGBTs, os divorciados e até muitos católicos de visão mais aberta.

Para elaborar o livro, que deve ser lido por todos, não somente pela comunidade católica, o autor se aprofundou numa reportagem investigativa que durou quatro anos (entre 2015 a 2018), com várias viagens para a Itália e mais de 30 países. Foram realizadas 1500 entrevistas, sendo 41 cardeais, 52 bispos, 45 núncios apostólicos, onze guardas suíços e mais de 200 padres católicos e seminaristas, para a feitura da obra de 500 páginas. Para apurar informações, chegou a se hospedar no interior do Vaticano e em residências extraterritoriais da Santa Sé.

De acordo com o escritor, “No Armário do Vaticano” se baseia em fatos, citações e fontes rigorosamente exatas, com a maior parte das entrevistas gravadas (400 horas de gravações). Frédéric teve ajuda de uma equipe de 80 colaboradores. Seu editor Jean-Luc Barré acreditou no trabalho e ele fez um agradecimento às suas 28 fontes internas da Cúria Romana, “todos assumidamente gays comigo”. O livro foi defendido e liberado por uma quinzena de advogados.

“Além da mentira e da hipocrisia generalizadas, o Vaticano também é um local de experiências inesperadas: constroem-se lá novas formas de vida em casal; novas relações afetivas; novos modos de vida gay; tenta-se formar a família do futuro; prepara-se a aposentadoria dos velhos homossexuais” – analisa o autor, que ainda classifica cinco perfis de padres, como a “virgem louca”, o “esposo infernal”, o modelo da “louca por afeto”, o Don Juan falsificado” e o modelo “La Montgolfiera”.

A “virgem louca” segue o código dos filósofos católicos Jacques Maritain, François Mauriac e Jean Guitton, e de alguns papas recentes homossexuais homofóbicos, que não são praticantes, mas adeptos da linha do amor platônico. Escolheram a religião para não cederem à tentação; e a batina para escaparem à sua orientação.  O “esposo infernal” é o padre “não assumido”, ou em dúvida, mas consciente de sua homossexualidade e com medo de vivê-la. A “louca por afeto” tem sua identidade. O “Don Juan” não pode ver um rabo de calça. O modelo Montgolfiera é o da perversão que tem redes de prostituição, os tipos cardeais indecentes Alfonso López Trujillo, da Colômbia, de Ângelo Sodano, de Platinette, do padre Macial Maciel, do México e tantos outros da Cúria.

VIDA DUPLA DOS PRELADOS

O escritor enaltece a posição do Papa Francisco que, em suas homilias, fala da hipocrisia e da vida dupla dos prelados, como no prólogo do livro. Ele hoje vive imprensado entre os que apoiam e os tradicionais mais empedernidos. Existe dentro do Vaticano uma “guerra de foice”. Assim aconteceu a enxurrada de escândalos de denúncias divulgadas na mídia sobre casos homossexuais e de corrupção na Cúria. Uma turma queria mesmo era se vingar; passar o sarrafo no cardeal Tarcísio Bertone, o vice Papa durão de Bento XVI, que mandava e desmandava.

Frédéric diz que as aparências de uma instituição talvez nunca tenham sido enganadoras em suas profissões de fé sobre o celibato (agora defendido novamente por Bento XVI), e nos votos de castidade, que escondem uma realidade diferente. Quanto a Francisco, destaca sua frase de que por trás da rigidez, há sempre alguma coisa escondida, referindo-se a uma vida dupla dos prelados.

No capítulo “Domus Sanctae Marthae”, o escritor da obra fala da existência, no Vaticano, de um “código do armário”, que consiste em tolerar a homossexualidade dos padres e dos bispos; desfrutar dela, mas mantê-la em segredo. Sobre esta questão, enfatiza que dezenas de milhares de padres italianos julgaram que a vocação religiosa era a solução para seu problema. O sacerdócio foi, durante muito tempo, a escapatória para os jovens homossexuais, não bem vistos e não engajados em suas aldeias.

Martel cita padres que viveram a Teologia da Libertação e participaram da militância gay, e até morreram de aids, sozinhos, sem o amparo de colegas e da Igreja, o que demonstra a hipocrisia dentro e fora da Cúria. “Os gays foram deixados quase sozinhos perante o Vaticano. Mas talvez seja melhor assim: deixem que fiquem juntos! A batalha entre gays e o Vaticano é uma guerra entre bichas”.

NA FILA DA HOMOFOBIA

No capítulo “A Teoria de Gênero”, o autor tece comentários duros em relação ao cardeal norte-americano Raymond Leo Burke, porta-voz dos tradicionalistas, que encabeça a fila da homofobia. Como exemplo, cita frase do cardeal, em janeiro de 2014: “Não se deve convidar casais gays para jantares de família em que estejam presentes crianças”.

O cardeal comparou casais gays como criminosos que assassinaram alguém, e que tentam ser amáveis com os outros homens. Denunciou que o Papa não tem a liberdade de alterar os ensinamentos da Igreja em relação à imoralidade dos atos homossexuais. O escritor assinalou que em Roma a sua homofobia é tamanha que incomoda os cardeais mais homofóbicos. Para Burke, o casamento homossexual é uma provocação a Deus.

Seu amigo mais próximo, Benjamim Harnwell, dirigente do Dignitatis Humanae Institute (associação ultraconservadora), que reúne prelados mais extremistas, está ligado às ordens mais obscuras como a Ordem de Malta e a Equestre do Santo Sepulcro. Segundo testemunhos ouvidos, parte dos membros da Dignitatis seria constituída por homossexuais praticantes.

De acordo com o escritor, uma nova regra de “No Armário do Vaticano” é quando se protesta muito vivamente contra qualquer coisa. É um prenuncio de que falte a sinceridade. “Esse excesso os trai. “Quanto mais veemente for um prelado contra os gays, quanto mais forte for a sua obsessão homofóbica, maior a probabilidade de este não estar sendo sincero, e de sua veemência esconder algo de nós”.

Ele ressalta o cardeal Burke que recebeu o apoio de Donald Trump e do célebre conselheiro de extrema direita Steve Bannon. Martel afirma que Burke conhece, como ninguém, a face sombria de Sodoma, “Na Idade Média, os papas João XII e Bento IX cometeram o pecado abominável, e no Vaticano todo mundo conhece o nome do amigo do Papa Adriano VI e o dos amantes do Papa Bonifácio VIII. A vida escandalosa do Papa Paulo II é igualmente célebre. Dizem que ele morreu de um ataque cardíaco, nos braços de um pajem. Quanto a Sisto IV, nomeou vários cardeais dos seus amantes, entre eles, o sobrinho Rafael, feito cardeal aos 16 anos. Júlio II e Leão X, protetores de Michelangelo, ou ainda Júlio III, são apresentados como papas bissexuais.

SISTEMA DE ABUSOS SEXUAIS

Sobre os casos de pedofilia, Martel aponta a investigação do Boston Globe que colocou à tona um verdadeiro sistema de abusos sexuais, com acusações de 8948 padres e 15 mil vítimas (85% meninos entre 11 a 16 anos). O arcebispo de Boston, o cardeal Bernard Francis Law se tornou o símbolo do escândalo por acobertar os fatos. Teve de renunciar, mas contou com a proteção de Ângelo Sodano (secretário de Estado de João Paulo II). Conseguiu a imunidade diplomática para escapar da justiça norte-americana.

Durante sua investigação, Frédéric Martel comenta sobre um livrinho branco (um código), que a Cúria passou a oferecer aos cardeais Paul Poupard, Camillo Ruini, Leonardo Sandri, Tarcísio Bertone, Robert Sarah, Giovanni Batista Re, Jean-Louis Tauran, Christoph Schonborn, Gerhard Ludwig Muller, Achille Silvestrini, Stanislaw Dziwisz (secretário particular de João Paulo II) e a Ângelo Sodano, entre outros.

Quando estava em viagem para a Irlanda, onde o país foi devastado pelos casos de pedofilia, o Papa Francisco foi atacado pelo núncio, em Washington, Carlo Maria Viganó, com um discurso ácido. Ele acusou o Papa de ter acobertado os abusos homossexuais do cardeal norte-americano Theodore McCarrick.

No entanto, o cardeal, conquistador de amantes, foi privado do seu título e afastado pelo Papa.  Burke, que também reconheceu o problema grave da homossexualidade na Igreja, também aumentou a sua voz. Disse que a infâmia e a corrupção que entraram na Igreja deviam ser purificadas pela raiz.

O escritor ressalta que a ala direita da Cúria declara guerra a Francisco. Segundo ele, essa ofensiva é lançada por uma facção gay contra outra facção gay, sendo uma antiFrancisco de extrema, e a outro pró-Francisco e de esquerda. Para o padre teólogo James Alison, o caso Viganó é a guerra do armário velho contra o armário novo. Sobre Viganó, o jornalista católico americano Michael Winters desabafou que o seu ódio a si mesmo o levará a odiar os homossexuais; ele seria aquilo que ele próprio denuncia. A sua carta de acusação, na interpretação de Martel, se tornou num documento importante sobre a cultura do segredo, a conspiração do silêncio e a homossexualização da Igreja.

Apesar de considerar que o texto faz muitas insinuações descabidas, o autor entende que Viganó considera necessário “confessar publicamente as verdades que mantivemos escondidas” e pensa que “as redes homossexuais presentes na Igreja devem ser erradicadas”. Para o escritor da obra, Viganó ficou preso na homofobia da década de 60, e não compreendeu que a partir da década de 80 passamos da criminalização da homossexualidade para a criminalização da homofobia.

“QUEM SOU EU PARA JULGAR”?

A frase do Papa Francisco, um tipo de resposta e pergunta, em entrevista no avião que o trazia do Brasil, em 28 de julho de 2013, se referia a rigidez, a hipocrisia, a luxúria e aos próprios pecados da Igreja. O porta-voz dos três últimos papas, Francesco Lepore, fala da norma de apoiar os prelados, lembrando que Francisco protegeu Batista Ricca, mantendo-o no cargo, como fizera Bento XVI com Georg Gânswein.

Batista sempre teve uma vida noturna conhecida. Em Montevidéu foi agredido num local público de encontros, e teria retornado à nunciatura de rosto inchado. O “L´ Expresso” noticiou que em outra ocasião teria ficado preso num elevador em plena noite, nas instalações da Embaixada do Vaticano. Foi liberado pelos bombeiros de madrugada com um belo jovem em sua companhia.

Num discurso, antes de sua eleição, Jorge Bergoglio (Francisco) fixou suas prioridades às periferias do Sul e da África. Já como Papa, em 2016, numa homilia, afirmou que, “Por trás da rigidez, há algo escondido na vida de uma pessoa. A rigidez não é um dom de Deus… Por trás dela há sempre alguma coisa escondida, como uma vida dupla”… Os rígidos mostram-se honestos, mas fazem coisas ruins quando ninguém os vê. Usam a rigidez para mascarar fraquezas, pecados e doenças de personalidade.

Em 2017, Francisco ataca os cardeais da Cúria, chamando-os de hipócritas que vivem de aparência. “Como bolas de sabão, escondem a verdade de Deus, mostrando um rosto de imagem piedosa para assumirem o aspecto de santidade”. O Papa deixa claro que conhece a vida oculta de determinados cardeais conservadores que recusam as suas reformas. Em outra ocasião, na Flórida, diz: Penso que a Igreja deve pedir perdão aos gays que ofendeu. Que deve se desculpar com os pobres, com as mulheres que foram exploradas, com os jovens privados de trabalho e por ter abençoado tantas armas.

Bem, o livro “No Armário do Vaticano”, de 500 páginas, é detalhista e devorador de segredos. O autor, em suas viagens, esmiúça o que se passa dentro da Igreja, descrevendo, em seus capítulos, sobre hipocrisia, homossexualidade, Dissidentes, VatiLeaks, (escândalos de corrupção e homossexualidade dentro do Vaticano), uma trama para derrubar o secretário de Estado de Bento XVI, Tarcísio Bertone, o conhecido Vice Papa, a Abdicação, Os Seminaristas que são assediados pelos prelados e também fazem seus programas às escondidas, O Sínodo em que Francisco foi derrotado pelos tradicionais, a Estação Roma Termini onde padres e bispos procuram seus garotos de programas, especialmente os refugiados na Itália.

Dentro da obra, o leitor pode ainda conhecer e se surpreender com fatos estarrecedores sobre o Código Maritain (ser homossexual não praticante), o Sacro Colégio, Os Legionários de Cristo (padre Macial Maciel, do México), o Círculo de Luxúria, Os Guardas Suíços, a Cruzada contra os Gays, Os Diplomatas do Papa (viajantes pela África, Ásia e América do Sul, com todas mordomias, à procura de aventuras) e de um Casal Estranho.

“BUENOS AIRES”

No capítulo “Buenos Aires”, Martel revela relações desagradáveis de Ângelo Sodano, o secretário de Estado de João Paulo II, com Bergoglio (Francisco) sobre a Teologia da Libertação, renegada e condenada pelos homossexuais (João Paulo II e Bento XVI). Essa ideologia pós-marxista, que milita por uma Igreja dos pobres, foi popularizada a partir da Conferência Episcopal Latino Americana de Medellín (Colômbia), em 1968, denominada pelo peruano Gustavo Gutiérrez. Segundo os defensores da Teologia da Libertação, as causas da pobreza e da miséria são econômicas e sociais. Foi criada no cerne das comunidades eclesiásticas de base e seguida por Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Frei Beto. Essa teologia se alimenta do exemplo de Cristo.

Segundo um pastor luterano de Buenos Aires (Teologia do Povo), Bergoglio nunca foi de esquerda, mas um peronista. Ele cita o núncio Pio Laghi que se mostrou próximo das juntas militares (1974-1980) e entrou em conflito com Bergoglio, Pio foi cumplice dos militares, informante da CIA e homossexual enrustido. Ele chegou a negar a perseguição dos padres na Argentina. Martel declara que Pio participou da máfia gay fascista que cercava o regime. Héctor Aguer e Leonardo Sandri, arcebispo e ministro do Interior da Santa Sé foram também inimigos do atual Papa Francisco. Em 2010, a Argentina foi o primeiro país da América Latina a reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo (na Europa foi a Holanda, cerca de dez anos antes). O Vaticano sempre foi hostil à união civil homofóbica.

O cardeal Antônio Quarracino, de Buenos Aires, queria deportar os homossexuais para uma ilha, conforme aponta Osvaldo Bazán, autor de um livro sobre a história da homossexualidade argentina. Sobre Francisco, um especialista da religião católica argentina destaca que o Papa é mais de esquerda nas questões sociais, e mais de direita nas questões morais e de sexualidade.