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:: ‘Encontro Com os Livros’

“A MÁSCARA DA ÁFRICA” VIII

No livro “a Máscara da África”, o autor V.S. Naipaul, prêmio Nobel de Literatura, indaga ao seu amigo Rossatanga sobre o processo de iniciação. Ele responde que tinha ouvido muito acerca da iniciação quando jovem. “Todos no Gabão falam disso, ou ao menos parece. Ela requer um mestre, uma cerimônia com danças e tambores que dura a noite toda, e comer a raiz amarga de uma planta alucinógena, a iboga”.

Naipaul quis saber se nesse ritual de honra ao ancestral também está contida a ideia de virtude. Segundo Rossatanga, “não. Os ancestrais estão lá somente para oferecer resposta para nossos problemas e nos dar o que queremos. Você não tem voz na aldeia nem nos problemas dela se não tiver sido iniciado”.

Quanto ao fruto da banana, ele afirma que é um símbolo sexual da virilidade do menino, que se alimenta dela e o resto das frutas é esfregado em seu corpo. Com respeito às mulheres, ressaltou que elas têm o poder real. “Uma mulher pode não exercer o poder, mas o transmite ao seu filho”.

“Somos uma sociedade matrilinear, e as mulheres dão a vida. Esse país não foi feito para homens. O corpo das mulheres é mais forte e, por isso, são feiticeiras”. Informou ainda que “existem diversos sacrifícios rituais em que os olhos são removidos e a língua arrancada de vítimas vivas. Todo dia há um sacrifício ritual”.

Naipaul também conversou com o professor Gassiti, que também era farmacêutico por conta própria, e quis saber dele sobre a planta milagrosa do Gabão, o iboga. Respondeu que desde tempos imemoriais, a iboga tem sido usada em rituais de iniciação, e esses rituais são exclusivos do Gabão. “Podem ser chamados de patrimônio gabonês. A primeira tribo a conhecer a iboga foram os pigmeus”.

Foram os pigmeus que passaram todo esse conhecimento para outras tribos. “Eram os verdadeiros mestres e agora um americano tem uma patente e ganha milhões com ela”. De acordo com Naipaul, os pigmeus, o pequeno povo, foram os primeiros habitantes da floresta e se tornaram mestres para outras tribos. Conheciam outras incontáveis plantas, suas propriedades curativas ou venenosas. Foram os primeiros a desvendar a iboga alucinógena. Sobre este pequeno povo, vamos falar na próxima postagem.

“A MÁSCARA DA ÁFRICA” VII

Ainda em sua viagem ao Gabão, pelos idos de 2008/09, a terra dos mestres da floresta, os pigmeus, V. S. Naipaul observou que “qualquer que fosse a religião formal professada pela família (cristã, no caso) havia aqueles antigos costumes africanos que tinham de ser honrados e que eram talvez mais prementes do que a fé exterior formal”.

Ele conversou com seu amigo Rossatanga-Rignault que contou a história dos quatros macacos sentados num cemitério com faixas vermelhas nas testas. “ O vermelho é uma cor muito poderosa do Gabão. Estavam perdidos e, por fim, encontraram o caminho de volta para a aldeia.

Por falar em aldeia, Rossatanga diz que, levado pela sua mãe, quis fugir dela. Lembra que, quando chegaram lá, um homem lhes disse que não jogassem lixo, nem qualquer outro elemento poluente, no córrego que passava pela aldeia. Um espírito ou gênio vivia ali e não gostava que o córrego ficasse sujo. Um americano afirmou que aquilo era magia negra e, para provar sua tese, cuspiu no córrego.

Rossatanga narrou para Naipaul que dez minutos depois não havia mais água ali, e o povo gritou e protestou. A aldeia ficou em pé de guerra. “Tivemos que fazer um monte de coisas por meio do curandeiro local para aplacar o gênio do espírito”. Assinala que “gastamos muito dinheiro e, depois de várias cerimônias e rituais, a água voltou depressa”.

Rossatanga se tornara um crente na magia da floresta e, como outros crentes, tinha diversas histórias para provar sua tese. Ele descreve outra passagem sobre uma ponte que tinham que fazer no rio e que a comunidade alertou para que os engenheiros pedissem permissão ao gênio.

Os engenheiros holandeses apenas riram daquilo. “Todos os dias morria um operário na obra. As pessoas ficaram muito assustadas e até mesmo os engenheiros acharam que deviam suspender o trabalho. Disseram que iam trazer um exorcista junto com o curandeiro local para aplacar o gênio. Executaram diversos rituais e, finalmente, tiveram licença para construir a ponte”.

“Acredito que esses espíritos da floresta estão ligados à psique do nosso povo, mesmo das pessoas que vivem na cidade. Essa é uma razão pela qual as igrejas evangélicas americanas tiveram tanto sucesso aqui. Elas também invocam o espírito do Senhor para remover o mal. É parecido com o que fazemos quando vamos ao curandeiro para remover o mal. O princípio é o mesmo. O ponto comum é o espírito”- comentou Rossatanga.

Para ele, não se trata de uma religião, mas de uma crença. Em sua comparação, a crença da floresta, o mundo orgânico, o mundo que conta, é como uma pirâmide. “O primeiro nível são os minerais, o segundo nível são as árvores e a flora, o terceiro são os animais e o quarto são os seres humanos”.

Em falando dos idosos, em seu entendimento, são especiais porque têm o poder e estão próximos aos ancestrais. Somente os ancestrais podem anteceder junto a Deus. “Cada família tem um ancião que consegue falar com o ancestral. Em cada família existe um homem escolhido para a função. O modo de cultuar é através da iniciação, um rito e uma prática fundamental”.

“A MÁSCARA DA ÁFRICA” VI

Em “Filhos da Antiga Floresta”, do livro “A Máscara da África, o autor V. S. Naipaul fala da sua visita ao Gabão (2008/09), a terra dos pigmeus, os mestres da floresta, e abre com a frase do advogado e acadêmico Guy Rossatanga-Rignault (ancestralidade mestiça) de que “as religiões novas, o islã e o cristianismo, ficam apenas na superfície. Dentro de nós está a floresta”.

O escritor destaca que os colonizadores franceses, que tomaram o território nos anos 1840, não foram ávidos. Trinta anos depois chegaram a enviar um navio para retirar seu pessoal. “Os missionários, no entanto, se recusaram a sair, e a colônia sobreviveu. O tráfego fluvial se desenvolveu”.

Com o estabelecimento da colônia, começou o corte, a derrubada da floresta primária. Licenças de trinta anos foram concedidas a chineses, malaios e japoneses. Eles são mais impiedosos e, ao cabo das licenças, “ haverá trechos de deserto no que antes foi floresta”.

Mesmo com as áreas desmatadas, segundo o escritor Naipaul, as florestas do Gabão ainda são uma das visões mais deslumbrantes do mundo. Ele conta a história de Rossatanga que nasceu na cidade e ainda criança sua mãe o levou para aprender os segredos da floresta. Para o filho, ainda jovem, a floresta era assustadora.

Na floresta, diz Naipaul, a noite cai muito depressa. A escuridão é densa. “Para entender a visão do povo do Gabão, é preciso entender a floresta”.

Rossatanga descreve que quando a escuridão chega à floresta, não existe som algum. Mas à noite há diferentes sons ou barulhos vindos dos animais caçando. “A noite e os barulhos configuram nossa mentalidade, porque as pessoas estão ligadas a tudo na floresta. O trovão não é só o trovão, como para vocês. É a voz de Deus: tente entender isso”…

Apesar de bons engenheiros, os franceses nunca construíram estradas no Gabão. A primeira ferrovia foi construída em 1981 pelo Gabão independente, mesmo contra as recomendações do Banco Mundial.

Em seu diálogo com Rossatanga sobre a floresta (para ele um muro), o escritor indaga sobre de que modo isso afetava sua crença. Rossatanga responde que “nós sentimos que tudo tem vida, inclusive as árvores. Existe uma árvore mística, uma árvore vermelha. Quando vamos à floresta, conversamos com ela e lhe contamos nossos problemas”.

Todos no Gabão acreditam na floresta e no princípio da energia que a floresta ilustra. Para Rossatanga, cada coisa viva é energia. Se alguém morre na família, sabermos que alguém pegou a energia dele”…

“Você mata é pega a energia. Também vamos ao curandeiro para tomar a energia de alguém. É por isso que, às vezes, as pessoas sentem que têm de fazer um sacrifício ritual. Somos uma sociedade matrilinear”  Nossa conversa sobre o Gabão prossegue no próximo capítulo.

 

“A MÁSCARA DA ÁFRICA” V

“O REI DA FLORESTA” (PELO PAÍS DA COSTA DO MARFIM

No livro reportagem do Prêmio Nobel de Literatura, nascido em Trinidad, o escritor V. S. Naipaul, de “A Máscara da África” faz sua viagem entre os anos 2008/09 pela Costa do Marfim e outros países. Em sua jornada, entrevistou e conversou com seus guias, estudiosos, babalaôs e até chefes de santuários sagrados.

No capítulo “O Rei da Floresta” ele descreve sobre Houphouet-Boigny, o imperturbável presidente da Costa do Marfim, amado pelos franceses e adorado pelo seu povo. Um homem que poderia ser chamado de rei.

Richmond é uma espécie de guia com quem ele conversa sobre os mistérios desse país africano que também cultua os espíritos ancestrais que vivem nas florestas e montanhas. Richmond conta uma história fantástica que ouviu de sua tia sobre como Houphouet se preparou para uma vida de poder.

Esse que se tornou rei consultou um grande xamã ou curandeiro sobre como ter o poder eterno. Seguindo seu conselho, Houphouet se fez cortar em pequenos pedaços, que foram cozidos junto com algumas ervas mágicas num caldeirão.

Dentro do caldeirão, num momento crucial, os pedaços de Houphouet se juntaram e se transformaram numa poderosa serpente que teve que ser derrubada no chão por um auxiliar de confiança. Depois de domada, a serpente se tornou novamente em Houphouet. Essa história tinha como testemunha a auxiliar confiável do próprio Houphouet.

Essa auxiliar era a tia de Richmond, cozinheira de Nkrumah, o primeiro presidente de Gana independente e um dos grandes homens da África moderna. Essa história foi narrada para milhares de pessoas no país em diferentes versões. Foi graças a esses relatos sobrenaturais que o mito do presidente foi mantido vivo entre seu povo.

A receita do curandeiro tinha funcionado. Por toda África havia mudanças sangrentas e, mesmo assim, Houphouet governou por toda vida, sempre descartando seus desafiadores. Morreu aos oitenta e oito anos, mas parecia ter mais que isso. Na África, a vida privada de um governante sempre foi um mistério.

O pátio real, rodeado por um alto muro de 15 quilômetros de comprimento, ficava no meio da cidade de Yamoussoukro, construída em torno do sítio da aldeia onde Houphouet nasceu. Atrás do muro havia um jovem bosque.

“Deus sabe que rituais secretos, que sacrifícios, executados por sabe lá que sacerdotes secretos, eram maquinados para manter a salvo o rei e seu reino numa época em que nada na África parecia sólido” – destaca o escritor.

Segundo Naipaul, bem longe do pátio havia poderosos emblemas das fés importadas, como uma mesquita ao estilo norte-africano que cruzou o Saara até aquele lugar longínquo das florestas úmidas africanas. O outro emblema era uma basílica que prestava homenagem a São Pedro.

A religião era um ponto de honra para Houphouet, de acordo com o autor do livro. Foi o que manteve o rei forte. Agradava a ele honrar aquelas duas fés internacionais, apesar de se entregar às vibrações africanas que deviam ser encenadas em rituais privados, com seus crocodilos sagrados, destinados somente ao rei.

Naipaul afirma que há vinte e sete anos quando estivera na Costa do Marfim, alguém da universidade lhe dissera que, quando um grande líder morria, seus servos e escravos tinham de tratar de fugir, pois podiam ser enterrados com seu amo.

No entanto, havia servos de tão grande lealdade que queriam morrer com seu líder. De uma fonte estrangeira soube que centenas tinham sido mortos no funeral de Houphouet, isto é, pessoas apanhadas do lado de fora, como vagabundos ou pedintes.

 

 

“A MÁSCARA DA ÁFRICA” II

No capítulo de “Lugares Sagrados”, do livro “A Máscara da África”, o escritor V. S. Naipaul viaja até Lagos, na Nigéria, entre 2008/09, onde narra as tradições do sagrado africano num diálogo com seus guias turísticos e o executivo Adesina, diretor de uma multinacional. Visita babalaôs, fala das religiões estrangeiras do cristianismo e do islamismo. Ouve pessoas sobre as tradições culturais e mitos dos antepassados. As igrejas cristãs não conseguiram se fixar no norte da Nigéria onde predomina o muçulmano.

Naipaul afirma que os nigerianos têm sua própria noção de status. Eles se divertem com coisas que outras pessoas levariam a sério. Um passaporte diplomático, com suas várias imunidades, era um dos brinquedos que tinham chegado com a independência e a criação do Estado. Em sua visita, em Lagos e outras cidades, ele observa de perto a miséria de um povo nos bairros mais pobres, mesmo com a chegada do petróleo.

Destaca que o edifício do aeroporto, conforme observou em sua chegada, era caótico por dentro. Nas ruas, mendigos saiam da escuridão. No hotel havia um aviso de que todo cuidado era pouco antes de entrar num taxi. No saguão do hotel ele se fixou numa escultura atraente e misteriosa africana. Me disseram que era uma figura de baile de máscaras.

O escritor cita passagens do viajante e pesquisador Mungo Park (1771-1806). Na época das guerras napoleônicas, por volta de 1790, Park descreve as crueldades e privações, na maior parte provocadas por mercadores de escravos que conduziam seus cativos acorrentados desde o interior, levando-os semidoentes e mal alimentados ao longo de 800 quilômetros até a costa, para serem vendidos e guardados nos porões dos navios atlânticos.

No livro de Park, aparece a figura do Munbo Jumbo. Na cidade de Kolor, Naipaul viu uma roupa mascarada, pendendo do alto de uma árvore. Disseram pertencer a Mumbo Jumbo, um tipo de bicho-papão, comum a todas aldeias dingas, muito empregado pelos nativos para manter suas mulheres submissas. A África era polígama nessa época.

Diz a tradição que, quando a mulher não obedecia ao marido ou fazia coisas erradas, ele chamava o Mumbo Jumbo que saia da floresta com todo seu disfarce até um ponto da aldeia onde os moradores se reuniam. Muitas vezes era o próprio marido. Canta-se e dança-se até à meia noite. Mumbo declara que a mulher é culpada. Ela é agarrada, suas roupas são arrancadas e, nua, é amarrada a um poste e espancada até o amanhecer por Mumbo e seu cajado. Os aldeões gritam de prazer e não demonstram misericórdia.

A África hoje não é mais polígama, só os muçulmanos. A Nigéria agora é rica por causa do petróleo. Essa Nigéria moderna tem a idade de oito ou dez gerações. Alguns maias dotados carregam esse fardo da juventude do país. O escritor conhece um tal de Edun que nascera em Manchester, na Inglaterra. Era um imigrante que não conhecera a tradição de cem anos atrás. Edun foi poupado do outro lado da mentalidade nigeriana que mergulha bem fundo em antigas crenças e magias, que resiste à racionalidade.

O autor também conversa com um empreiteiro que diz ser cristão iorubá. Ele veio de uma família católica e disse ter visto uma menina possuída pelo Espírito Santo, sendo purificada. Aquilo lhe deixou mais espiritual ao ponto de acreditar que existe um alfa e um ômega que nos vigia. Em sua visão, quando o homem tem educação, ele pode racionalizar melhor.

Sobre as divindades tradicionais, afirmou serem bem conhecidas internacionalmente. Existem sítios sagrados ou santuários e festivais. Edun citou um bosque onde se realiza o festival de Oxum, em Osogbo. Seguidores do orixá se reúnem ali em hordas e rezam pelo que querem com os pais e as mães de santo. Para o festival vem gente do Brasil, de Cuba, dos Estados Unidos e do Haiti e dura uma semana. No último dia, uma virgem com uma grande cabaça sobre a cabeça caminha até o rio (Oxum que também é o nome de um estado da Nigéria, cuja capital é Osogbo).

Naipaul ressalta que são muitos os orixás (deuses e deusas iorubanos) e suas histórias se entrelaçam. O empreiteiro narra muitas histórias da Nigéria, como a de pastores das igrejas que vão discretamente a um pai de santo tradicional num santuário. Havia um rei de Lagos que era chamado de obá. Existem obás (chefes) por toda Nigéria, uns hereditários e outros pagos pelo governo.

A Nigéria, antes de ser britânica, foi portuguesa. Os seus guias de viagem contam que nos velhos tempos, o obá e os chefes sentavam em esteiras e falavam uns com os outros no pátio aberto. Um amigo do norte, de Kano, lhe confidenciou que o nigeriano pode ter uma cultura equina, mas não tem amor pelos animais. Naipaul observou que não haviam cães e gatos comuns perambulando nas ruas.

Em sua viagem, o escritor também conheceu Adesina, um executivo financeiro, com qual trocou experiências e ideias sobre a Nigéria. Com ele conheceu vários santuários. O pai de Adesina, que era católico, se converteu ao islamismo por causa dos árabes comerciantes do norte. Eles traduziram o Corão para o iorubá e pregavam na mesma língua.

Quando Adesina ainda era menino, seus pais perderam todos os bens. A tribo da família foi acusada de usar amuletos para matar um homem poderoso de outra tribo. Pela tradição, ele teve que trabalhar e tomar conta da família. Ele se especializou em cálculos.

Em conversa com o escritor, Adesina revelou que todas as pessoas ricas e os guerreiros da sua tribo consultam seu adivinho ou babalaô antes de irem a qualquer lugar ou fazer qualquer transação. Até mesmo os obás têm seus babalaôs, que ocupam o nível mais alto entre os adivinhos e são chamados de arabas na terra iorubana. Se houver algum problema, o babalaô vai dizer que é preciso consultar o ifá (o rosário-de-ifá e as dezesseis sementes de dendê). No ritual, o babalaô jogo um ou o outro e lê a mensagem do oráculo.

“A MÁSCARA DA ÁFRICA-VISLUMBRES DAS CRENÇAS AFRICANAS”

OS REIS OU OS KABAKAS (CHEFES) CRUEIS DE UGANDA (BUGANDA) DO POVO BAGANDA DO SÉCULO XIX, A CULTURA TRADICIONAL DO CULTO AOS ESPÍRITOS ANCESTRAIS, OS SACRIFÍCIOS HUMANOS E A INVSÃO DAS RELIGIÕES ESTRANGEIRAS (O CRISTIANISMO E O ISLAMISMO).

O Prêmio Nobel de literatura de 2021, V. S. Naipaul, que escreveu “A Máscara da África” empreendeu uma viagem pelo continente em 1966 (revisitada 40 anos depois) e sentiu as mudanças, resultantes do progresso e da influência exercida pelo mundo exterior. Uganda virou uma bagunça e aumentou consideravelmente a pobreza e a miséria.

Mesmo expostos às grandes religiões do cristianismo e do islamismo, o sistema antigo de crenças, herdadas dos antepassados, ainda persistem. De Uganda, depois de mais de 40 anos, o escritor passou pela Nigéria, Gana, Costa do Marfim, Gabão e África do Sul, entre 2008 e 2009, visitando locais sagrados e conversando com intelectuais, autoridades políticas, chefes religiosos e pessoas comuns.

Em sua observação, constatou que ainda existem os laços que vinculam às crenças e práticas religiosas ancestrais. Neste livro, Naipaul, nascido na ilha de Trinidad, em 1932, graduado na Universidade de Oxford, nos oferece um amplo panorama dos dilemas enfrentados pela África de hoje. Seu romance mais famoso foi “Uma Casa para o Sr. Biswas”, escrito em 1961. Vale a pena viajar nas obras desse escritor.

“A Tumba de Kasubi” é o primeiro capítulo da obra “A Máscara da África” onde ele descreve sobre os kabakas cruéis Sunna e seu filho Mutesa, passando por Idi Amim, entre 1971 até 1979 (dizem que matou mais de 150 mil pessoas), e pelo governo do feroz Milton Obete, de 1981 a 1985. Entre 2008 e 2009, apesar do deslocamento de 1,5 milhão de pessoas e da epidemia da aids ainda havia 30 a 40 milhões de habitantes vivendo em Uganda (Buganda).

Nesse capítulo “A Tumba de Kasubi”, vamos falar um pouco de Sunna e Mutesa, bem como das mudanças com a invasão das religiões estrangeiras (anglicana, a presbiteriana e o islã) que chegaram prometendo a vida além da morte, enquanto o povo tradicional praticava a cultura de venerar os espíritos ancestrais que viviam nas florestas e eram seus guias. Foi aí que Uganda se deteriorou.

Em sua viagem por Uganda, Naipaul fala do kabaka Sunna, do meado do século XIX, conhecido pela sua grande crueldade, e a chegada dos árabes que espalharam o islamismo. Depois vieram as igrejas eclesiásticas narradas pelo escritor, em 2008/09. “Nas áreas nobres superconstruídas havia estruturas cristãs “evangélicas”. Também havia mesquitas concorrentes de vários tipos, como sunitas, xiitas e ismaelitas”.

De acordo com Naipaul, até os anos 1840, Uganda tinha ficado isolada, vivendo para si mesma, até a chegada dos mercadores árabes que foram bem acolhidos por Sunna. Seu filho sucessor Mutesa, que chegou a receber o explorador John Hanning Speke, em 1861/62, era tão cruel quanto o pai.

Speke presenteou o kabaka com armas, bússola, espelho e outros instrumentos, mas o povo baganda, com seu dom para a organização social e disciplina militar, possuía sua própria civilização. “Construíam estradas tão retas quanto as dos romanos; tinham a higiene em alta conta; e dispunham de uma frota no Lago Vitória, o maior da África.

“O fruto dessa decisão de mais de 139 anos atrás podia ser visto agora em Kampala (capital). A religião estrangeira, a julgar pelos edifícios eclesiásticos que competiam entre si nos morros, era como uma doença impregnada e contagiosa, que não curava nada, não oferecia nenhuma resposta definitiva, mantinha a todos num estado de nervos, travando batalhas erradas e estreitando a mente”. Essas religiões estrangeiras, segundo Naipaul, possuíam uma teologia complexa.

O príncipe Kassim, no entanto, tinha uma outra interpretação. Em uma conversa, o príncipe disse que ambas as religiões ofereciam para os africanos um além-vida, davam às pessoas uma visão de si mesmas vivendo depois da morte. A religião africana era mais etérea, oferecendo apenas o mundo dos espíritos e os ancestrais.

Em sua visita à Tumba de Kasubi, ele conheceu uma velha guardiã do túmulo de um kabaka, considerada privilegiada por ser uma das esposas. “Os kabakas não morriam. Desapareciam e iam para a floresta, que ficava bem em frente, na parte interna da tumba”.

Quanto ao funeral de um kabaka, conta em sua narração de viagem, que envolvia rituais que teriam vindo do passado distante. O cadáver do rei tinha que ser dessecado sobre um fogo brando durante três meses. O maxilar era retirado e adornado com contas ou cauris (conchas).

Nos velhos tempos, o sacrifício humano era uma prática comum quando se levantavam as pilastras ou se assentavam as fundações de uma tumba. Ressaltou que, quando Speke veio a Uganda, em 1861, Mutesa era kabaka, exercendo o mais despótico tipo de poder em sua corte, matando pessoas “feito galinhas”.

Certa vez, numa histeria, sem nenhum motivo aparente, levou a lança consigo ao harém e matou mulheres até que sua sede de sangue fosse saciada. Nessa época, nem havia sido coroado. Em 1886, o jovem sucessor de Mutesa, Mwanga, farto das novas religiões tão inconvenientes, ordenou que seus 22 pajens cristãos fossem queimados. Antes foram espancados a pauladas e chicoteados pelos carrascos do palácio e logo picotados a machadadas.

A tradição baganda ditava que o sangue de príncipes não era algo que pudesse ser espalhado. Era uma proibição religiosa e, por isso, não poderia haver pauladas e chicotadas para eles. Só podiam ser queimados em esteiras de junco.

A ESCRAVIDÃO DOS CRISTÃOS BRANCOS PELOS TURCOS, MOUROS E MUÇULMANOS

Quando se fala em escravidão nossas mentes lembram logo de imediato a negra africana para as Américas, a mais cruel e vergonhosa, que durou cerca de 350 anos, mas ela sempre existiu desde o início da humanidade nos tempos primitivos.

Nas guerras, como no Império Romano, um exemplo, os prisioneiros se tornavam cativos do Estado e dos senhores oficiais donos das terras. A revolta dos escravos, comandados por Spartacus, reunião mais de 100 mil homens que, por pouco, não invadiram Roma.  Foi até escrito o romance “Spartacus”. E na Grécia antiga dos filósofos?

Na época das Cruzadas, nos séculos XI e XII, os derrotados dos dois lados se tornavam escravos. A Igreja Católica até criou ordens religiosas, como os trinitários, na França, e os mercedários, na Espanha, para resgatar, por altos preços, os seus fiéis do cativeiro.

Sem muita visibilidade porque poucos escreveram sobre o tema, em paralelo à escravidão africana, entre os séculos XVI e final do XVIII, aconteceu a dos cristãos brancos na região da Berbéria (Túnis, Argel e Trípoli) pelos corsários mouros, turcos e muçulmanos, sob o comando de Constantinopla, mais por motivos religiosos.

Alguns métodos e práticas de torturas foram até semelhantes. Quem explorou bem o assunto foi o historiador e pesquisador em Phd, Robert C. Davis, que publicou o livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”. Foi mais uma barbárie pouco divulgada onde os corsários em galés capturavam cristãos brancos da Inglaterra, França, Espanha, Portugal e Itália, principalmente.

Depois exigiam resgates caros ou eram levados para os chamados banhos públicos, um centro prisional no estilo dos campos de concentração nazistas. Como na escravidão negra, existia também um mercado de vendas desses cativos não resgatados pelo Estado e seus familiares, denominado de “Badistão”. Esses banhos públicos foram depois demolidos, sem deixar vestígios para preservar a memória.

Naquela época, as moedas mais utilizadas de compras eram os xelins ingleses, dinares argelinos, cequins venezuelanos, dólar espanhol, sultani de ouro turco, ducado veneziano, escudos romanos, patacas, grossi napolitano, piastras, onças sicilianas, dentre outras. Não se usava mercadorias como na Costa da África, no Congo, na Guiné e no Benin.

Os argelinos, com mais navios e piratas, foram os que mais investiram nas capturas de escravos cristãos brancos nobres, oficiais da marinha e pobres, na grande maioria camponeses e pescadores, entre início do século XVI ao XVIII. Eles visavam mais os italianos, muitos dos estados papais que tinham mais dinheiro para pagar.

Muitos, os mais pobres, ficavam 10, 20 e até 30 anos como escravos na Costa da Berbéria. Outros morriam nos cativeiros ou não resistiam aos espancamentos, torturas, surras, trabalhos forçados nas galés e terminavam se convertendo ao islamismo.

Os senhores reis, paxás e ricos das regências aproveitavam as mulheres para serem suas concubinas ou fazerem parte de seus haréns. Os homens eram seduzidos para serem seus cativos sexuais. Nos banhos públicos, devido a própria superlotação, eram comuns as práticas homossexuais, embriaguez, brigas constantes e mortes

 

 

AS CARTAS E AS PROCISSÕES DAS ORDENS COM OS ESCRAVOS CRISTÃOS RESGATADOS

No último capítulo, “Celebrando a Escravidão”, do livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, o autor, historiador e pesquisador Robert C. Davis divulga as cartas dos cativos libertados, especialmente pelas ordens dos trinitários e mercedários. Descreve a figura do pecado e da redenção na escravidão, bem como as procissões espetaculares para comover os fiéis a participar de mais doações. Esses atos promoviam o trabalho das missões de resgates dos escravos na Costa da Berbéria (Túnis, Argel e Trípoli).

As negociações de remições de escravos entre as ordens e os senhores proprietários, reis, paxás, turcos e mouros, já naquela época dos séculos XVI e XVII, eram constituídas de trapaças, subornos e corrupções. Os escravos libertos caiam nas mãos do Estado, de seus tutores e passavam por um processo de humilhação e descriminação social, sem falar do período de quarentena que eram submetidos para voltarem às suas famílias. Como sempre, os mais pobres eram os mais excluídos da integração na sociedade.

O pecado, a misericórdia, a punição e a salvação são onipresentes nos escritos dos escravos brancos na Berbéria. Como diz Robert, todos abraçavam esses conceitos como forma de compreender qual seria o propósito de Deus para infligir tanto flagelo a seus fiéis. Certa vez o abade Pietro Caissotti perguntou qual será o crime desses pobres escravos para serem sujeitos a uma punição tão severa? Ele mesmo respondeu que suas culpas e crimes eram reconhecer Cristo como o mais divino salvador.

“Pelos meus pecados, fui capturado num lugar chamado Ascea” – disse um cativo, em 1678. Esses homens e mulheres sempre se colocavam como passíveis da ira de Deus num inferno especialmente criado com essa finalidade. Escreveu (as cartas duravam cinco, seis meses ou mais para chegarem aos seus destinatários) outro em 1735: “Sinto-me como se estivesse em outro mundo de sofrimentos e dos tormentos do inferno”. Outro descreveu como uma alma no purgatório à espera de algum tipo de alívio. “Minha grande aflição, a aflição do purgatório e das chamas do inferno”.

Segundo Robert, essa penitência, sob o cruel jugo da escravidão, significava para a maioria dos escravos que eles seriam “espancados, praguejados e chamados de cães infiéis” por seus carrascos. Eles eram expostos aos riscos mais severos. Alguns viam a escravidão de uma forma mais positiva. Seria uma maneira como Deus testava os fiéis, colocando à prova a força de sua devoção diante do flagelo da escravidão.

Muitos não passavam no teste e abandonavam suas crenças, “vivendo como meras bestas”, em total embriaguez e depravação. Outros abraçavam o islamismo, desistindo de suas almas, como se tivessem feito um pacto com o satanás – escreviam alguns observadores da época.

De acordo com o autor da obra, o mínimo que se esperava de seus familiares é que mantivessem contato com o escravo, na esperança de que suas cartas ajudassem a levantar seu ânimo para suportar os efeitos corrosivos da submissão sobre sua fé.

Muitas das mulheres, crianças e idosos, conforme ressalta Robert, perderam para a escravidão o homem que trazia o sustento para dentro de casa, e agora, tendo de enfrentar a fome, rebaixavam-se e deixavam a fé de lado para recorrer à mendicância, ao crime ou à prostituição, para sobreviver.

Eram os lamentos que os cativos reportavam em suas cartas e acusavam, por vezes, suas comunidades e terras natais por não responderem aos seus clamores. “Ai de nós, pobres e abandonados, sem ninguém movido por compaixão, já que, com essa esperança… poderíamos continuar vivendo e crendo, sem abjurar em decorrência de muitas chibatadas que temos de tolerar nas mãos desses bárbaros”. Quem abjurava à sua fé e depois retornava ao cristianismo, era condenado à morte.

Os problemas dos agentes redentores estatais ficaram piores com o passar do tempo por causa da escassez de financiamento confiável, informação fidedigna sobre quem estava escravizado e habilidades comerciais para negociar com os proprietários. Os religiosos trinitários e mercedários eram mais espertos e começaram a mudar o quadro no final do século XVII.

No início dos anos 1700, os muçulmanos na Berbéria que investiam em escravos expandiram seus negócios nesse mercado cada vez mais, pois estavam interessados no lucro rápido advindo dos resgates, ao invés de explorar a mão-de-obra deles. Segundo registros do observador Laurent D´ Arvieux, por conta da Coroa Espanhola, os escravos dessa nacionalidade eram comprados e libertados com mais presteza.

Também os trinitários, criados na França no tempo das Cruzadas, eram talentosos negociadores, quando, em 1762, ofereceram seus serviços aos venezianos. Mesmo proibidos de coletar ofertas nesse território, os padres se colocaram apenas como agentes de remição do governo veneziano. Eles forneceram ao Senado Veneziano uma vasta coleção de materiais convincentes, como listas impressas com todos escravos que tinham remido em nome de outros estados clientes, bem como uma tabela comparativa entre os resgates que pagavam e os cobrados pelos “hereges e judeus”.

Por negociarem a libertação de escravos há anos, os trinitários e mercedários eram treinados em gerenciar os resgates com destreza. Sabiam dos truques que os proprietários usavam para elevar o preço. Usavam de artimanhas, como comprar o médico do rei, para declarar que o escravo estava doente, fazendo acreditar que o cativo corria o risco de morte. Terminavam adquirindo o escravo por uma quantia irrisória.

PROCISSÕES DE EX-ESCRAVOS

Como habilidosos, bons pregadores e arrecadadores na Espanha e na França, eles levaram aos estados italianos uma combinação de misericórdia e organização que encontrou forte eco nos sentimentos religiosos da península. Eles eram conhecidos por suas grandes procissões de ex-escravos, eventos que o padre Camillo di Maria chegou a chamar de “um triunfo da paz, da liberdade e do júbilo…”

Essas procissões eram incrivelmente populares entre as pessoas de todas as classes. Eram espetáculos urbanos mais característicos na Itália do século XVIII. Quando os cativos libertos eram apresentados aos romanos, em 1701, “as ruas ficavam lotadas com as inúmeras carruagens e com a aglomeração de pessoas, desde a Igreja de Santa Sussanna até o Palácio Apostólico do Quirinal.

Um acadêmico chegou a chamar essas procissões de fuzuê, que não passava de um meio para gerar contribuições, um espetáculo que visava, nada mais nada menos, estimular as emoções e, assim, as doações das pessoas mais religiosas.

O historiador narra uma procissão que houve em janeiro de 1764, quando houve uma parada com 91 escravos pela cidade de Veneza, com gastos em torno de 2.550 ducados, um valor cinco a dez vezes à quantia arrecadada nessas ocasiões.

Dentro do esquema dessas ordens, todo contingente de ex-escravos, os padres que os acompanhavam e seus auxiliares eram submetidos a uma quarentena. No século XVII, um período de isolamento era necessário e obrigatório para qualquer um que chegasse à Itália do norte da África e do Levante, porque estavam assolados de praga.

Após terminada a quarentena, os ex-escravos eram reunidos numa das igrejas relacionadas à ordem redentora. Era costume entre os mercedários, nas procissões que realizavam na Espanha e na França, vestir os escravos libertos com trapos que usavam na Berbéria, ornando-os também com correntes, porém quebradas.

Os padres redencionistas compravam humanos como qualquer outro traficante de escravos. Assim também pensavam muitos que viviam na Berbéria, conscientes de que não apenas missionários e cônsules estavam acostumados a alugar escravos cristãos como criados. Os padres redentores frequentavam o mercado badistão e davam seus lances ao lado de traficantes de escravos turcos e mouros.

Mesmo depois de comprados, os escravos, de certa forma, continuavam na posse dos padres, simbolizados pelas fitas no lugar das correntes durante as procissões. Os que contribuíam com alguma parte do resgate, tinham mais liberdade de ação, voltando diretamente para suas casas sem ter de antes viajar para a capital. Escravos pobres tinham noção de suas dívidas que estavam contraindo perante os padres e seus conterrâneos.

As procissões significavam um processo de purificação. A própria recompra tinha conotações interessantes. Os padres redencionistas compraram humanos como qualquer outro traficante de escravos. Homens e mulheres deixavam de ser mercadorias de um senhor muçulmano para serem tutelados pelos padres e pelo Estado. Logo que chegavam às cidades, eles eram entregues às autoridades estatais e confinados em quarentena por mais de um mês por causa da praga.

Os clérigos, na maioria jesuítas, trabalhavam para recatequizá-los, purificar suas almas da influência do islã. Muitos dos escravos remidos entravam em depressão, especialmente aqueles mais pobres que tinham poucas opções de trabalho, a não ser retornar ao mar e arriscar serem escravizados novamente. Quando estavam na escravidão, muitos apelavam para as elites para serem libertados, com a promessa de serem seus escravos.

AS ORDENS RELIGIOSAS E OS RESGATES

Na Itália Barroca e na França dos séculos XVI e XVII foram criadas várias ordens religiosas, com a finalidade de arrecadar fundos para resgatar escravos cristãos da região da Berbéria (Túnis, Argel e Trípoli), de Constantinopla, Turquia e até do Marrocos. Essa prática secular também foi copiada pelos cativos africanos nas Américas visando alforriar seus escravos.

Entre tantas, as duas mais importantes, desde os séculos XII e XIII, eram a dos trinitários, da Santíssima Trindade, em Paris, na França, e a dos mercedários, a Santa Casa das Mercês, na Espanha.

Por mais que tenham se dedicado, essas entidades conseguiram poucos resultados por causa das barganhas dos senhores proprietários dos cativos. Só poucos foram beneficiados. As remições tornavam-se difíceis quando o capturado era vendido para terceiros.

Por outro lado, os mais privilegiados sempre eram os clérigos, os nobres e os personagens com maior posição social. Essas ordens espalharam uma grande rede de coletores de doações por toda Europa, o que abriu, já naqueles tempos, espaços para os golpistas que se faziam passar por arrecadadores. Muitos também davam moedas falsificadas. Tudo isso, há mais de 600 anos, nos faz lembrar os dias atuais de corrupções e falcatruas.

Estas e outras questões descritas sobre a escravidão branca estão no livro “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, do autor historiador Robert Davis. Sobre o tema, ele afirma que “a Península Itálica, até então, vinha sendo uma das presas preferidas dos corsários berberes por dois ou mais séculos e, com isso, houve um grande êxodo das populações litorâneas para vilarejos cercados por muros e no alto de montanhas, ou para cidades como Rimini, deixando quilômetros de territórios costeiros, antes populosos, nas mãos de vagabundos e piratas”.

O modo como esses cristãos brancos eram levados pelos corsários da Berbéria variava pouco. O que aconteceu com eles, segundo Robert, durante o tempo das Marcas Papais, foi praticamente o mesmo que houve com aqueles que foram sequestrados ao longo dos desprotegidos litorais napolitanos, genovês e das ilhas espanholas.

Para Davis, nos três séculos da jihad cristã-muçulmana, que começou por volta do ano de 1500, a pirataria e a escravidão se tornaram instrumentos políticos de Estado para ambos os lados. Escravizar pessoas não só despojava o inimigo de milhares de cidadãos produtivos, mas também fornecia mão-de-obra capaz e uma fonte de renda por meio dos resgates.

No final do século XVI, as galés corsárias à caça de escravos, tanto cristãs quanto muçulmanas, rondavam o Mediterrâneo em busca de espólio humano – descreve o escritor. Da Catalunha ao Egito, homens e mulheres, turcos e mouros, judeus e católicos, protestantes e ortodoxos eram vítimas em potencial. Eles eram capturados e arrebanhados nos currais de escravos em Constantinopla, Argel, Túnis, Trípoli, Malta, Nápoles ou Livorno, e lá eram revendidos como remadores de galés, trabalhadores rurais ou serviçais domésticos – destacou.

A Itália, posicionada bem na linha de frente dos dois impérios em guerra, de acordo com Robert, estava entre as regiões mais devastadas, conhecida como “o Olho do Mundo Cristão”. Esse território era desguarnecido e ficava a mercê dos otomanos. Os mais expostos eram aqueles que trabalhavam no cultivo das terras costeiras, até 15 ou 30 quilômetros do mar.

As famílias (idosos, crianças, mulheres) dos capturados ficavam sem seus provedores e passavam miséria nas cidades ao ponto de comerem restos do lixo. Além do mais, não tinham condições financeiras e bens para pagar os resgates pedidos pelos sequestradores e proprietários, principalmente quando os escravos caiam nas mãos destes últimos. Ficava ainda mais complicado a comunicação com os cativos. Muitos iam trabalhar nas galés ou outros lugares desconhecidos.

Foi então que nações europeias, ordens religiosas e indivíduos engajados começaram a se mobilizar em prol de iniciativas de remição que viriam a ser um dos maiores movimentos sociais do início do mundo moderno mediterrâneo. As remições seguiram um padrão estabelecido séculos antes pelas duas principais ordens redentoras: A Ordem da Santíssima Trindade, ou trinitários, fundada na França, em 1193, e a Ordem de Nossa Senhora das Mercês, ou mercedários, em Barcelona, em 1203. Ambas foram criadas para libertar escravos cristãos, em particular os cruzados, das mãos dos muçulmanos.

Em 1548, o imperador Carlos V fundou a Real Casa Santa dela Redentione de Cattivi. Esta estrutura napolitana forneceu o modelo para outros estados italianos quando vieram a criar suas próprias sociedades redentoras. O próprio Vaticano utilizou esse padrão em 1581/82 para tratar do resgate de seus súditos. Uma das confrarias mais prestigiadas de Roma era a Santa Maria del Gonfalone.

A tarefa de solicitar esmolas para as remições recaiam mais entre os padres e freis que eram homens treinados a pregar em busca de contribuições e podiam explorar as estruturas e os costumes católicos. Os capturados eram sempre levados para o porto de Dulcigno e de lá vendidos para a Berbéria se não pagassem os resgates num tempo determinado.

Apesar dos requisitos austeros que essas instituições impunham àqueles que ansiavam pela ajuda humanitária, nem todas pagavam o valor total da remição de um cativo. Algumas, como os Provveditori sopra Luoghi Pii de Veneza e a Santa Casa Napolitana ofereciam apenas uma quantia fixa, na forma de uma nota promissória, conhecida como “Cristo”, em Veneza, e como albarano, em Nápoles. Eles emitiam suas notas em nome do próprio escravo.

 

AS PRÁTICAS HOMOSSEXUAIS NA BERBÉRIA E AS CRUELDADES NOS BANHOS PÚBLICOS

SOBRE AS TAVERNAS NOS BANHOS PÚBLICOS, MISSIONÁRIOS MANIFESTAVAM SUA REPULSA PELO QUE VIAM, CHAMANDO DE LUGARES ABOMINÁVEIS ONDE HOMENS COMETIAM CRIMES TERRÍVEIS. A MAIORIA DOS CRIMES FOI APRENDIDO COM OS TURCOS. UMA TENEBROSA LIBERTINAGEM RESULTADO DA EMBRIAGUEZ.

AS NARRATIVAS DO ESCRAVO JOÃO MASCARENHAS FORAM PUBLICADAS EM 1627 NA FORMA DE PANFLETO, EXEMPLO DE LITERATURE COLPORTAGE, DIFUNDIDA NO INÍCIO DA IDADE MODERNA. FOI ADQUIRIDFO POR PORTUGAL POR LIVREIROS INTINERANTES QUE COMERCIALIZAVAM COM O NOME DE LITERATURA DE CORDEL, POIS OS VOLUMES ERAM AMARRADOS UNS AOS OUTROS COM BARBANTES PARA SEREM VENDIDOS EM VÁRIOS LUGARES.

Os senhores proprietários, turcos, mouros, paxás e reis da Costa da Berbéria (Argel, Túnis e Trípoli) se aproveitavam dos escravos novos cristãos para práticas sexuais, na maioria das vezes forçados a isso, sem falar do homossexualismo existente nos banhos públicos superlotados, considerados por pesquisadores e testemunhos da época (séculos XVI a XVIII) como campos de concentração, semelhantes aos nazistas e aos gulag soviéticos.

Alguns chegaram a contestar as crueldades e torturas dos senhores, como as que existiram contra os escravos africanos trazidos para as Américas (12 milhões) em mais de três séculos, mas foram comprovadas por cativos cristãos brancos.

Diferente do que ocorreu com os mercados de gente na Costa Africana, cujas memórias dos locais foram preservadas, esses banhos públicos foram destruídos entre os séculos XVIII e XIX, principalmente com a invasão francesa a Argel em 1830. Essa escravidão na Berbéria era uma represália religiosa. Os muçulmanos também foram cativos dos cristãos, sobretudo na Espanha, Portugal e Itália durante as guerras dos dois impérios (cristãos e muçulmanos).

O historiador e pesquisador Robert Davis, que escreveu a obra “Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos”, se debruçou sobre esse tema pouco explorado e conta também as brigas internas que existiam entre católicos e não católicos. No livro, ele cita por diversas vezes testemunhas do escravo d´Aranda sobre uma intriga entre russos ortodoxos e espanhóis italianos.

“Um deles foi até o pequeno cômodo (banho público ou prisão) onde se encontravam os russos moscovitas saudando-os da seguinte forma: cães, hereges, selvagens, inimigos de Deus, o banho agora está trancado (era fechado ao entardecer), e o zelador (o feitor) mandou dizer que, se tiverem coragem de lutar, vocês deveriam sair dessa sua toca, aí veremos quem leva a melhor”.

Robert Davis ressalta que qualquer divisão secular, como língua ou política, servia de justificativa para gerar discórdia entre os escravos, tanto quanto as crenças religiosas, e há indicativos de que esses subgrupos, provenientes de culturas mais próximas, eram os que mais estavam propensos a trocar farpas entre si.

DIFICULDADES DE COMUNICAÇÃO

As brigas constantes, segundo ele, entre espanhóis, franceses, portugueses ou italianos são inícios de que esses escravos se entendiam o suficiente para trocar insultos. Entretanto, as dificuldades de comunicação entre escravos e seus senhores era uma fonte inesgotável de conflitos na Berbéria, como aconteceu com os africanos de primeira geração nas Américas.

Para desenrolar esse entrave, havia uma língua franca (pidgin), modelo para todas as outras línguas francas ao redor do mundo. A predominância era dos espanhóis do Mediterrâneo, parte da Berbéria e do italiano no leste. Essa língua (uma versão do europeu românico) tinha suas raízes nos idiomas dos marinheiros e mercadores e preencheu suas lacunas com uma série de palavras locais (árabe, turco e grego). Servia para dar ordens aos escravos.

Nas galés, no entanto, os escravos eram proibidos de falar uns com os outros em qualquer outra língua que não fosse a franca, para que seus capatazes pudessem compreender o que discutiam ou tramavam. Não era um idioma muito fácil de ser entendido, principalmente em situações tensas.

Às vezes o senhor usava termos em espanhol e o italiano para humilhar o escravo com a palavra cão (perro cane ou cani perru). Alguns termos evoluíram, como do italiano mangiar no sentido de comer, ser consumido. Outras palavras eram derivadas do árabe ou do turco.

Quanto aos banhos públicos, o pesquisador da obra, diz ser difícil quantificar a população escrava, mesmo porque alguns zeladores alugavam suas dependências a proprietários individuais de cativos, as quais serviam para armazenar a mercadoria humana quando não queriam manter esses escravos dentro de casa. Eles eram obrigados depois a reembolsar seus senhores pelos custos desses alojamentos, com a venda de água ou até roubando.

Com o declínio das galés corsárias (final do século XVIII), a relação entre escravos públicos de banhos e os privados sofreu uma queda. Em 1696, padre Lorance, vigário de Argel, observou que o número de escravos particulares excedia em muito ao de públicos confinados nos banhos.

ABANDONADOS

Os banhos privados começaram a ser abandonados a partir de 1700, inclusive o maior deles do poderoso Ali Pegelin, que por volta de 1640 mantinha cerca de 800 homens dentro de seu estabelecimento. Durante o forte declínio da escravidão na Berbéria, entre 1690 e 170, a maioria dos escravos deve ter vivido com mais conforto, nas casas de seus senhores. Porém, no transcorrer do século XVIII, o número de escravos particulares caiu e o do Estado permaneceu estável.

TORTURAS E TORMENTOS

A respeito das crueldades e torturas, alguns eram céticos. No entanto, o padre Pierre Dan conta todas as penúrias impostas aos escravos cristãos, e ele fez um catálogo dos tormentos que lhes foram infligidos pelos muçulmanos. Os editores intercalaram prosa com um conjunto de ilustrações horrendas. Muitos foram esmagados vivos, outros empalados, queimados e crucificados.

O escravo John Foss, por exemplo, dedicou um capítulo inteiro ao assunto, denominando-o de “As punições mais comuns para cativos cristãos pelas mais diferentes ofensas”. Robert destaca que tais castigos cruéis, sem motivos aparentes, tinham razão de ser, pois costumavam garantir a disciplina entre os escravos.

As surras tinham o condão de encourager les autres, como alerta aos outros para que mantivessem bom comportamento. O Estado e o Ali Pegelin chegavam a matar alguns deles. Esses tipos de violências eram também difundidos entre proprietários e feitores de escravos nas Américas. Como declarou um fazendeiro no sul dos Estados Unidos: “O medo da punição é o princípio a que deveríamos e temos de recorrer, se quisermos manter os cativos atordoados e obedientes”.

O pesquisador Stephen Clissold concluiu que os escravos da Berbéria descreviam uma vida nos banhos como uma mistura entre um campo de concentração nazista, uma prisão inglesa e um campo de trabalhos forçados soviéticos, os gulag. Os cativos eram largados à própria sorte pelos paxás. Eram vítimas de surras aleatórias, alimentação e acomodações miseráveis, roupas degradantes, além do celibato forçado.

Os públicos eram condenados pelo resto de suas vidas, não por um processo judicial, mas em razão de seu status. Quem pertencia ao Estado não era ninguém. Não contava com um senhor privado para libertá-lo ou pagar seu resgate.  O escravo João Mascarenhas dizia que estes homens nunca vão embora, já que não serão libertados.

 

 





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