outubro 2021
D S T Q Q S S
 12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31  

:: 2/out/2021 . 0:14

“OUSMANE SEMBÈNE E A ÁFRICA TRADUZIDA EM PALAVRAS E IMAGENS”

Pescador, pedreiro e estivador que se tornou um escritor e cineasta intelectual, soube muito bem retratar, como nenhum outro, as realidades africanas e ultrapassou fronteiras sendo reconhecido internacionalmente por acadêmicos de renome. Através da literatura e do cinema, o senegalês Ousmane Sembène (1923-2007) foi para seu povo africano, não somente do seu país, uma espécie de imagem-despertador do passado, do presente e do futuro.

Quem bem interpretou sua trajetória de vida foi o historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, Silvio Marcus de Souza Correia, na obra “Intelectuais das Áfricas.  Numa linguagem compreensível, ele diz que, “desde a publicação do seu primeiro livro, em 1956, até o lançamento do seu último filme em 2004, o reconhecimento internacional do seu trabalho fez de Sembène um dos mais importantes intelectuais africanos do século XX”.

Sobre o termo intelectual, o professor afirma ser alguém que reflete sobre questões e dilemas do seu tempo com base em teorias, e cujo trabalho acadêmico ou artístico tem a capacidade incomum de contribuir para o conhecimento de determinadas realidades sociais.

Se o conceito de intelectual for mesmo esse, foi o que o senegalês procurou fazer como escritor-cineasta, com ética e sem viés religioso ou partidário político. Sembène fez os africanos acordarem para suas realidades sempre atuando com o passado pré-colonial, o presente e o futuro pós-colonial.

O autodidata que criou sua consciência política através da leitura, Sembène dedicou-se, depois de passar por vários países, como a França, à arte de escrever romances e novelas e fazer filmes numa época em que escritor e cineasta era reconhecido como intelectual e não raro como maître à penser, conforme assinalou o historiador Sílvio Marcus que o considera como “pai do cinema africano”.

“Sua obra foi pródiga em temas ligados ao passado colonial e aos dilemas da África contemporânea. Assim como sua experiência de vida foi matéria prima para muitos romances, novelas e filmes, Ousmane fez da historiografia uma fonte de suma importância para a sua ficção” – diz o professor de Santa Catarina.

Em sua narrativa sobre Sembène, o historiador chega a citar o filósofo Jean Paul Sartre que, em 1949, enfatizou a importância da negritude enquanto movimento de afirmação identitária para africanos, afro-caribenhos e afro-americanos, e também o quanto essa literatura era inovadora.

De acordo como o historiador, para alguns, como Sembène, a negritude tinha um valor literário, porém escapava-lhe a realidade social dos trabalhadores negros. Não demorou muito para a literatura africana de expressão francesa ser renovada por uma nova geração de escritores.

Sembène foi um desses. Militante marxista, passou por Marselha, na França, como estivador, e logo depois criou uma seção do Movimento de Liberação da Guiné e do Cabo Verde, em 1959.

No mesmo ano participou do segundo congresso de escritores e artistas negros, em Roma. No ano seguinte publicou seu romance Les Bouts de Bois de Dieu e renunciou sua nacionalidade francesa saindo do Partido Comunista e outras organizações políticas para se entregar totalmente à arte.

Em 1961, o senegalês partiu para Moscou para estudar cinema. Depois de sua temporada na Rússia, Sembéne visitou alguns países africanos e se radicou em seu país para criar, em Dacar, a Filmes Domirey. Segundo Sílvio, o escritor-cineasta acreditava no poder de transformação por meio da literatura. Porém, ele se convenceu de que o cinema tinha um maior alcance do que a literatura entre aquela gente com quem simpatizava.

O senegalês levou para as telas algumas novelas e romances de sua autoria, como Lá Noire de… em 1966, exibido na França e no Senegal, onde recebeu, respectivamente, o prêmio Jean Vigo e o grande prêmio do Festival Mundial de Artes Negras. Foi o primeiro longa-metragem de um cineasta da África Subsaariana.

Nos anos seguintes ele foi membro e presidente de vários juris de festivais da sétima arte, inclusive no Rio de Janeiro. Em 1968 filmou sua novela intitulada Mandato, agraciado com o prêmio especial no festival de Veneza. Em 1988, o senegalês realizou um dos seus mais importantes filmes de longa, o Camp de Thiaroye, coroando seu trabalho de cineasta aos 65 anos.

Para Sembène, tanto a palavra como a imagem deveriam servir à desconstrução do discurso neo-colonial que tanto fez uso de palavras e imagens. Como assinala Silvio, para o senegalês, a literatura tinha a missão de fazer os leitores refletir sobre suas condições de existência e lhes mostrar que é possível melhorá-las. Seus romances quase sempre tinham um personagem principal capaz de refletir sobre a condição humana e de buscar alternativas com impacto social.

“Assim como na literatura, o cinema lhe oferecia a oportunidade de formular um contradiscurso, uma nova linguagem para mostrar uma outra África, diferente daquela folclórica. As imagens de uma África exótica era produto de um imaginário ainda colonial” – escreve Sílvio sobre o cineasta.

Sembène chegou a afirmar, certa vez, que os filmes projetados nas telas africanas nada tinham a ver com os africanos. Dizia que o trabalhador africano carece de imagens reveladoras de uma realidade encoberta ou distorcida pelo colonialismo.

Sílvio Marcus destacou que, mesmo que seus personagens sejam suas criações, muitas delas foram inspiradas em pessoas que ele conheceu ao longo da vida como pescador, pedreiro, estivador, soldado, imigrante, sindicalista, escritor e cineasta.

Em seus filmes, ele mostrava como essas pessoas viviam, como puderam resistir e como morreram. Fazia questões para o passado a partir do seu presente. Para ele, o real histórico era matéria para transformar em arte. “Eu sou por um cinema militante. Eu acredito que é possível realizar filmes que sirvam de ponto de partida a debates”- declarava Sembène.

 





WebtivaHOSTING // webtiva.com . Webdesign da Bahia