Eram os anos iniciais da década de 1970, e o regime ditatorial com o general Médici era de chumbo e tirania. A duras penas frequentava a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia-Ufba (terminei a graduação em 1973). Nos primeiros meses de 1970 lutava aguerridamente para conseguir uma vaga na Residência Universitária, mas meu pai, um roceiro, não tinha documentos exigidos pela reitoria que provasse ser pobre necessitado. Questão da maldita burocracia!

Para sobreviver, vivia de bicos (quando arranjava) morando num pardieiro ali no Politeama (centro), comendo pão três vezes ao dia, misturado com mel Karo feito do milho. A barriga roncava e pedia socorro quando passava nas portas dos restaurantes. Da calçada olhava lá dentro as pessoas realizando suas refeições. Às vezes enganava o estômago quando um amigo trazia do restaurante universitário uma comida dentro de uma lata vazia de Nestlé.

Basta de lamento. Meu foco era mesmo morar na residência universitária, destinada aos estudantes carentes, e eu era um deles, mas o processo estava emperrado. Lembro que todos dias passava no Departamento da UFBA que administrava as três residências, localizado na Rua João das Botas, no Canela. A ansiedade era grande e todos os dias revisava a lista dos aprovados, que fica no balcão. Para ter certeza, olhava duas e até três vezes para certificar seu meu nome não estava incluído, e nada.

Fotos arquivo “A Tarde”

Aquilo me deixava ainda mais angustiado porque o cerco se fechava, mas não dava trégua à briga para conseguir minha vez. Quando se está na pior, os argumentos brotam mais fortes como uma explosão vinda do coração. Para encurtar, um dia cheguei lá com minha surrada malinha, e o responsável pelas casas, de tanta insistência, liberou o meu nome. Não consegui me conter de tanta alegria.

Não me lembro muito bem, mas já era o segundo semestre de 1970 e lá fiquei na R1, a maior de todas, no Corredor da Vitória, até o final de 1973. Foram três anos e meio de muitas boas lembrança, de farras de caipirinhas, aventuras e confabulações entre colegas. Não tinha nada, mas era feliz.

O mais difícil era que os homens da ditadura nos vigiavam dia e noite. Quando entrava uma cara nova, nós ficávamos com as antenas ligadas porque poderia ser um agente espião, e aí nada de grupinhos a três trocando ideias proibidas. Aliás, era proibido pensar.  Duas pessoas falando já era perigo à vista. Compensávamos a repressão e o medo com as curtições de final de semana no pátio da Residência (a R1), tomando umas cachacinhas (não tinha grana para cerveja em bar).

O bom era que não me preocupava mais com passar fome porque tinha a moradia e mais duas refeições garantidas (o café da manhã a gente se virava como podia). Sem dinheiro, fazia os percursos entre as faculdades onde tinha disciplinas na base da velha paleta, mas sem reclamar. Vivia numa boa, dentro do possível. Não me importava com dinheiro e nem com roupas.

Não sei como, me tornei vice-presidente da R1 ao lado de Aroldo que fazia medicina. Vez por outra o regime trancafiava alguém e sumia com um estudante. Assim aconteceu com meu companheiro presidente, e aí tive que assumir o seu lugar. Podia ser a bola da vez. Andava apreensivo, e os colegas ficavam na butuca quando pintava alguma coisa fora do normal. Algumas vezes tive que dormir fora, inclusive nas moitas do Abaeté.

A ditadura torturava, matava e desaparecia, como fizeram com meu amigo residente Machado, um negro do curso de engenharia. Sumiu sem deixar rastro. Todos os anos, no dia 7 de setembro, as residências eram cercadas por policiais militares, do exército e os federais. Ninguém saia. Certamente os generais temiam que fizéssemos um levante e, sem armas na mão, derrubássemos a dita cuja. Dificilmente um confiava no outro, mas tínhamos aqueles grupos mais seguros com os quais trocávamos nossas figurinhas.

Lá se foram 50 anos e não é que estão passando sobre nossas cabeças aquelas nuvens sombrias e pesadas que achávamos que não mais existiam! Sempre me recordo daqueles tempos de estudante da R1. A R2 ficava e ainda fica no Largo da Vitória e a R3, a Feminina, no Canela.

Neste domingo (dia 29/08) as lembranças jorraram outra vez quando vi e li uma matéria no jornal “A Tarde” sobre a situação das residências universitárias, com uma foto da escadaria de entrada do prédio neoclássico. Logo bateram as saudades quando era residente universitário.

Confesso que me imaginei ali descendo e subindo todos os dias. Muitos acontecimentos, muitas discussões, brigas e amizades seladas. Pena que as notícias não são nada animadoras. Hoje tem mais uma unidade na Avenida Garibaldi (quatro ao todo), e todas juntas têm capacidade para 389 alunos. Com a pandemia, só a metade está sendo ocupada. Muitos voltaram para suas cidades de origem.

Para começar, as residências sofreram drasticamente os efeitos dos cortes de verbas federais destinadas ao Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). Foram subtraídos R$6,5 milhões somente neste ano, 18% menor que o investido em 2020. Mesmo assim, a número um, (a R1) está sendo reformada porque seu prédio já é antigo e carece de cuidados.

A R1, da qual tive o privilégio de morar (adquirida pela Ufba em 1950) entrou em processo de tombamento, e o atual prefeito de Salvador, Bruno Reis, chegou a assinar o pedido, mas depois voltou atrás e revogou o decreto alegando que se trata de um patrimônio federal e que a prefeitura não tem recursos para bancar sua preservação.

Pode ter outros interesses escusos por detrás por parte do setor imobiliário que já derrubou a maioria dos casarões do Corredor da Vitória (ainda tem o Museu Costa Pinto), transformando o local numa selva de pedra. A situação da R2 (Largo da Vitória) não é diferente. A R3 (antiga residência feminina) foi transferida para uma casa alugada na Graça, que abriga 100 estudantes. A R4 foi construída em 2012, na Avenida Garibaldi, e atende até 190 estudantes.

Por causa das reformas e a pandemia, a R1 está com apenas 40% da sua capacidade de 80 alunos. Lembro que cheguei a morar no térreo, um local mais fechado e úmido que atualmente apresenta mais problemas na estrutura, e também no primeiro e segundo andares.

Sem recursos, a gente mesmo lavava nossos “paninhos de bunda” nuns tanquinhos que ficavam na parte externa. Sábado era o dia das “lavadeiras”. Ao lado fica o restaurante (saudades dos bandejões e das batidas de talheres quando a comida não estava boa). Os milicos ficavam de olho em nós. Todos eram vistos com subversivos e perigosos comunistas.

Para entrar hoje na residência é necessário ter renda familiar de até um salário mínimo e meio, estar regularmente matriculado na Ufba e não ter outra graduação em paralelo. O candidato tem que ser do interior. As exigências não mudaram muito de lá para cá, mas meu pai não tinha renda fixa. Vivia da lavoura e dependia do tempo chuvoso ou seco.  Tive que conseguir meu teto na “tora”, no convencimento de que era lascado mesmo.