Carlos González – jornalista

“O futebol é o ópio do povo”, frase atribuída ao jornalista, dramaturgo e torcedor fanático do Fluminense Nélson Rodrigues (1912-1980), adaptada da máxima “a religião é o ópio do povo”, de autoria do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), idealizador da doutrina comunista, está associada aos regimes totalitários e aos governantes que adotam a velha política do “pão e circo”. Extraída da papoula, a droga era usada, a partir do século XIX, pelas populações famintas da Ásia e do Leste Europeu como antidepressivo, com a capacidade de causar um efeito sedativo. Nos tempos modernos, o entorpecente de origem vegetal foi substituído pelo esporte, mais precisamente pelo mais popular deles, o futebol. A indesejada Copa América, em disputa no Brasil, está sendo usada por um presidente – que se diz palmeirense, mas posa com a camisa do rival Corinthians, – para tentar frear sua queda de popularidade, em função da situação caótica em que vive o país.

Recusada pela Colômbia, que convive com uma crise social, e pela Argentina, sem controle da pandemia, a Copa América foi prontamente aceita pelo genocida, que viu no torneio uma forma de armar o “circo” para aquela camada da população desempregada, ameaçada pelo vírus, sufocada pela alta da inflação e sem condições de se alimentar. Não adiantaram os protestos dos cidadãos conscientes, inclusive cientistas, e dos profissionais de saúde que cuidam dos infectados pelo coronavírus.

As confederações de futebol da América do Sul (Conmebol) e do Brasil (CBF) só visavam os milhões dos patrocinadores (Ambev e Mastercard retiraram o apoio financeiro); os jogadores brasileiros divulgaram um irrelevante comunicado onde juravam que o amor pela seleção era maior que tudo. Maior, evidentemente, do que o sofrimento dos familiares das mais de 530 mil vítimas da Covid-19. A maioria dos governadores se negou a receber os jogos, que estão sendo disputados apenas nos estádios de Brasília, Cuiabá, Goiânia e Rio (Maracanã e Engenhão).

O homofóbico (a Justiça do Rio quer saber por que a camisa nº 24 da seleção foi “cassada”) presidente imaginou que a Copa iria afagar seu devoto Sílvio Santos, dono do SBT, emissora que adquiriu os direitos de transmissão dos jogos, e criar picuinha com a Globo. A temporada circense não teve o êxito esperado. Sem público nas arquibancadas e um futebol violento e de péssima qualidade técnica, as seleções sul-americanas não empolgaram o torcedor, nem mesmo a brasileira, em franca decadência depois dos 7 a 1 aplicados pela Alemanha na Copa do Mundo de 2014, e no êxodo de jogadores para Europa e Ásia.

Os índices de audiência do SBT têm sido bem abaixo dos apresentados pela Eurocopa, transmitida pelo canal Sportv. A CBF até que procurou dar uma ajuda, transferindo partidas do Brasileirão para às 11 horas, e tirando um Fla-Flu do Maracanã – quem poderia imaginar – para o estádio do Corinthians.

“Pra frente Brasil”

Nessa Copa América envergonhada, Bolsonaro imaginou também que poderia desviar a atenção do país para os escândalos do seu governo, como se o brasileiro fosse o mesmo alienado dos anos de chumbo (1969 a 1974), o mais sanguinário da ditadura militar (1964-1985). O rigor da censura aos meios de comunicação impedia que o povo tomasse conhecimento das sessões de tortura e das mortes nos porões da ditadura, enquanto o presidente Garrastazu Médici (1905-1985) assumia o posto de torcedor número 1 da seleção, com direito a intervir na comissão técnica e na convocação dos jogadores, campeões mundiais de 70, no México. A marchinha “Pra frente Brasil” se transformou numa espécie de hino do regime autoritário.

A vitória alcançada pelos comandados de Zagalo estimulou Médici a continuar a se valer do futebol com finalidade política partidária. O AI-2, assinado em 1965 pelo marechal Costa Silva, criou o bipartidarismo, a fim de dar a impressão no exterior de que o Brasil respirava democracia. Após cassações de políticos que faziam oposição ao regime foram criados a Arena, o braço da ditadura no Poder Legislativo,  e o MDB, uma espécie de coadjuvante da comédia. Para fortalecer a Arena no interior do Brasil, Médici começou intervindo na CBF, colocando o almirante Heleno Nunes na presidência da entidade, com a orientação de aumentar o número de participantes do Campeonato Brasileiro, chegando a marca recorde de 94, sendo 30 do Nordeste, região que era representada apenas pelo Bahia. Daí surgiu o slogan: “Onde a Arena vai mal, um clube no Nacional”.

Ambicioso em suas pretensões, o Partido dos Trabalhadores (PT), que governou o Brasil de 1º de janeiro de 2003 a 31 de agosto de 2016, se candidatou, por iniciativa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a promover os dois mais importantes eventos esportivos do planeta, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, no intervalo de dois anos, contrariando a opinião dos economistas e de uma considerável parte da população, sob o argumento de que o país tinha outras prioridades no âmbito social.

Vaidoso e no auge da popularidade, Lula pretendia que o Brasil exercesse maior influência no concerto das nações, ou talvez sonhasse com vida longa para o petismo na chefia do poder. A indicação para a Copa de 2014 foi tranquila, diante das desistências de Argentina e Colômbia. A FIFA exige oito cidades-sede, mas Lula conseguiu ampliar para 12, cujas arenas, entre reforma e construção superfaturadas, minaram os cofres das estatais e do Executivo.

No primeiro dia de 2011 Lula passou a faixa presidencial para sua ex-ministra Dilma Rousseff, que ficou encarregada de montar toda a estrutura para realização da Copa. Com as obras atrasadas, que provocaram a reação da FIFA, ameaçando levar o torneio para outro país, a presidente não agiu para impedir os escândalos financeiros em seu governo, envolvendo ministros, diretores da Petrobras e empreiteiras. A campanha de “Não vai ter Copa” ganhou as ruas. Na abertura do torneio, em 12 de junho de 1914, Dilma foi recebida no Maracanã sob vaias e xingamentos.

A candidatura do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016 trocou o noticiário esportivo pelo policial. No dia 2 de setembro de 2009, em Copenhague, na Dinamarca, autoridades governamentais e esportistas comemoraram a indicação da capital fluminense. Um ano depois da realização do evento, o ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, preso por desvio de dinheiro público e condenado, confessou que seu governo, naquela reunião de setembro de 2009, comprou os votos de nove delegados africanos por 2 milhões de dólares. O intermediário da negociata foi Carlos Arthur Nuzman, presidente do COB, que chegou a passar 15 dias numa prisão, além de perder o cargo que ocupava há 22 anos. O suborno foi o método usado para afastar a cidade de Madri da disputa.

Muitos dos estádios construídos para a Copa do Mundo e os equipamentos para os Jogos Olímpicos estão hoje sem serventia, passando por um processo de deterioração. O legado financeiro negativo deixado por esses dois megaeventos não foi questionado nem pelo Ministério Público Federal nem pelo Tribunal de Contas da União.