A Abril Educação, em “Literatura Comentada”, numa seleção de textos biográficos e históricos de Marisa Lajolo e Ricardo Maranhão, desnuda a vida do poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage, falecido em 1805, que ficou conhecido como um desbocado de boa vida, fazendo o povo sofrido rir, mas que rompeu com as tradições ao falar a verdade, mesmo numa época onde era preciso agradar aos poderosos e seguir as regras clássicas acadêmicas.

Um jornal de Lisboa, de 22/12/1805, noticiou o falecimento de Bocage com 40 anos de idade, vítima de um provável aneurisma. Diz a nota que nos últimos anos ele vivia em companhia de sua irmã Maria Francisca e uma filha desta, sustentando ambos com traduções de livros didáticos.

Ex-membro da Armada Real Portuguesa, Bocage esteve na Índia, viajando num navio que fez escala no Brasil. Ele prestou serviços à Coroa nas colônias ultramarinas de Goa e Damão, dirigindo-se depois para Macau à revelia de seus superiores. Em sua vida, sempre foi um rebelde e debochado.

No retorno a Lisboa publicou suas primeiras poesias com o título de “Rimas”. Diante do sucesso, foi convidado a ingressar na Academia de Belas-Artes onde adotou o pseudônimo de Elmano Sadino. De temperamento forte e violento logo se desentendeu com vários poetas da Academia, desligando-se da agremiação. Foi acusado de heresia e perseguido, julgado e preso por algum tempo.

Ao recuperar a liberdade, segundo o jornal, com a promessa de converter-se, o poeta abandonou sua antiga boemia, vivendo o resto de sua vida como homem exemplar. A Abril Educação simulou uma entrevista como furo de reportagem, indagando se lá embaixo você é considerado um grande boa-vida, desbocado e briguento. Será que você não pode se apresentar aos nossos leitores de um jeito mais descontraído?

Bocage responde que “posso sim…Ponha aí então: Aqui dorme Bocage, o putanheiro/Passou a vida folgada e milagrosa/Comeu, bebeu”. O poeta nasceu em 15 de setembro de 1765, em Setúbal, Portugal. Em 1781 foge de casa e assenta praça como soldado, no Regimento de Infantaria, em Setúbal. Em 1783 muda-se para Lisboa e engaja-se na Armada Real Portuguesa.

O poeta foi autor de piadas e poemas pornográficos, sempre censurado e proibido, com ampla circulação clandestina. Escreveu versos desenxabidos e convencionais, cheios de alusões mitológicas e paisagens bucólicas? Ou foi o poeta que rompeu com o arcadismo, mergulhado em si mesmo que fez poemas de morte, amor e sofrimento? Ou o satírico irreverente que ironizou a sociedade e funcionários corruptos? Sabe-se, de acordo com a crítica, que ele é o avesso do Bocage popular. Para os mestres, foi um poeta sublime, herdeiro direto do soneto camoniano. A fama de boêmio e a tradição da poesia erótica só fizeram lhe comprometer.

Para outros que não dão ouvidos a professores, Bocage é uma espécie de mito. É quase uma metáfora: “Seu nome acoberta tudo o que de pornografia e libertinagens corre por aí”. Comentam os críticos da literatura que a censura portuguesa deste Bocage é paralela à tradição crítica, que considera qualquer obra satírica inferior a qualquer lírica.

A biografia do poeta apresenta um Bocage pecador arrependido, contrito e confesso no final da vida, reconciliado com Deus e com os homens. “Este Bocage oficial, portanto, é um poeta cuja trajetória de vida é exemplar, do ponto de vista de uma sociedade moralista e repressora, que encara prisão, doença, miséria e morte como castigo justo de uma vida violenta e inconformada”.

Boa parte da poesia de Bocage, conforme comentários dos autores da sua biografia e história, é composta de longos poemas circunstanciais e desinteressantes, que celebram acontecimentos do seu tempo, como as poesias dedicadas ao nascimento da rainha Maria Teresa, filha de D. João e Carlota Joaquina, ou os versos que choram a morte de um cidadão importante, como D. José, em 1777 (ele assumiu o torno em 1750, tendo como Secretário do Estado, o marquês de Pombal).

Em muitas vezes, o poeta se autocondena, falando de seus poemas como incultas produções da mocidade/Escritos pela mão do fingimento/Cantados pela voz da Dependência. Em “Já Bocage não sou… no final o poeta renega, aparentemente, todo seu passado de boemia e irreverência e se faz defensor de valores tradicionais e cristãos, quando diz “Se me creste, gente ímpia…/Rasga os meus versos…Crê na Eternidade”

A obra de Bocage é fruto de uma Academia douta e esnobe a exigir frieza de composição. No entanto, fora da Arcádia, no calor das ruas, o clima era propício para denúncias da hipocrisia social, da corrupção e da politicagem. Temas que não apareciam nas normas conservadoras do Arcadismo.

Fora dela, existiam os ecos da Revolução Francesa e a ascensão da burguesia. A poesia se transforma em mercadoria, e precisava agradar ao público que a pagava. “Fruto de tudo isso… é a poesia censurada de Bocage, irrompendo de improviso em botequins e estalagens”. “Era preciso falar a verdade”. “Era preciso voltar-se para o homem”