A lembrança que tenho quando ainda era menino sobre os bandos de ciganos pelas estradas a vagar foi de meu pai com um facão em riste a bradar no milharal contra aquela gente diferente que estava a colher espigas de milho na maior algazarra. Meu pai, depois de dar muito duro nas plantações, chamava-os de “ladrões” e “vagabundos” e os escorraçava da roça aos gritos. Eles o xingavam de “gajão” usurário.

Sempre ficou em minha mente a imagem de um povo errante, e que todos nas redondezas temiam sua passagem por aquelas bandas, e uns avisavam os outros quando eles estavam vindo, como forma de ficarem atentos e impedir suas investidas. Homens, mulheres e crianças se arrastavam com cavalos e mulas carregadas com badulaques. Aquelas cenas me fascinavam, e mais tarde me despertaram a curiosidade de conhecê-los melhor.

De um povo trapaceiro

O estereótipo sempre foi de um povo trapaceiro que agia como ladrões, adivinhos do futuro, que vivia de lugar em lugar armando e levantando suas tendas à beira das estradas e fazendas. Na verdade, o que havia era muito preconceito da sociedade e visão errada contra uma nação que sempre viveu em correrias pelo mundo porque adotou suas próprias regras e modos de sobrevivência, e só quer ter o direito de ir e vir, sem serem perseguidos.

Com a leitura de “Ciganos no Brasil – uma breve história”, de Rodrigo Correia Teixeira, passei a ter um outro conceito dos ciganos, diferente do estigma que sempre carregaram por causa de uma sociedade tida civilizatória que não aceita a diferença, achando que existe um padrão único de vida. No primeiro comentário, falamos de suas origens, grupos e como chegaram ao Brasil trazidos como cargas de Portugal.

Políticas anti-ciganas portuguesas

Rodrigo Teixeira prossegue em sua pesquisa descrevendo que as perseguições aos ciganos portugueses se acentuaram a partir do reinado de D. João V, de 1706 a 1750, quando centenas foram degredados para as colônias ultramarinas, inclusive o Brasil. A deportação continuou até final do século XVIII. De 1780 a 1786 foram enviados grupos de 400 ciganos anualmente para o Brasil.  É até impossível determinar quantos vieram para aqui. No entanto, segundo Teixeira, os primeiros que aportaram ao Brasil eram portugueses e não embarcaram voluntariamente.

Foi o que ocorreu com João de Torres e sua mulher Angelina, só pelo fato de serem ciganos. Insinua o autor que ele deve ter pago um suborno porque sua pena foi mudada para cinco anos no Brasil. Não se tem certeza se ele embarcou, ou quanto tempo ficou aqui. De acordo com o historiador, com base em documentos, a deportação mesmo para valer começou a partir de 1685, e que eles deveriam ir para o Maranhão (antes iam para as colônias africanas).

Teixeira cita o pesquisador Donavan, destacando que uma forma de D. João V expor publicamente sua determinação era ordenar a deportação de uma pequena quantidade, em torno de 50 homens, 40 mulheres e 43 crianças presos em Limoeiro. Tudo indica que uma parte foi para a Capitania de Pernambuco, outra para o Ceará e outra para Angola. A ordem era que não deixassem retornar para Portugal.

A Câmara de Olinda remeteu depois uma carta ao rei, comunicando que eles viviam espalhados pela capitania cometendo toda sorte de crimes, principalmente de furtos e assassinatos. A câmara pedia que eles fossem para o Ceará. Também, em 1718, consta que muitas famílias foram enviadas para a Bahia “por causa do escandaloso procedimento no reinado”. A primeira capital colonial tornou-se uma das mais importantes cidades para os ciganos do Brasil. Em Salvador, tudo indica que foram alojados nos bairros da Mouraria e Santo Antônio d´Além do Carmo.

Inquisição do Santo Ofício e em Minas

Historiadores apontam ainda a presença de ciganos nas Minas de Ouro em fins do século XVII, na busca do metal, e também por ser um lugar difícil para a inquisição do Santo Ofício. Augusto de Lima Júnior relata que houve grande escassez de alimentos em Ouro Preto por volta de 1700. No ambiente de desespero, negros escravos e bandos de ciganos armados saltearam vivos e saquearam os mortos. João Dornas Filho diz que eles chegaram a Minas através do Rio São Francisco.

No entanto, o estudioso do livro, afirma que foi somente a partir de 1718 que várias famílias de ciganos foram para Minas. A presença deles é registrada desde início dom século XVIII, o que contrariava as intenções da coroa portuguesa que ordenou que fossem remetidos para o Rio de Janeiro de onde então seriam mandados para Angola. O documento os chamava de “ladrões salteadores”. A ordem se estendia a quem os hospedassem em suas casas ou fazendas. No entanto, o governador de Minas advertia que as queixas eram somente por serem ciganos. Dornas Filho acrescenta narrações, sem fontes, sobre a ação de salteadores na Serra da Mantiqueira.

O que conta o autor da obra é que, aproveitando da fama, bandidos se faziam passar por ciganos, usando seus nomes e até agindo próximo onde eles se acampavam. Consta que, em 1726, em São Paulo, foram solicitadas medidas contra os ciganos. A política era que eles se mantivessem em movimento. “Minas Gerais expulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro, que os expulsa para Espírito Santo e de lá para a Bahia, que manda novamente para Minas Gerais” e voltam para a Bahia.

Entregues aos mestres

As ordens judiciais determinavam que os rapazes de pequena idade fossem entregues aos mestres, para aprenderem algum ofício e artes mecânicas. Quanto aos adultos, que assentassem praça de soldados, ou trabalhassem em obras públicas, proibindo o comércio de bestas e escravos, de modo que não ficassem juntos por muito tempo e vivessem em bairros separados. As mulheres deviam ficar recolhidas, ocupando os mesmos afazeres que usam as do país. Quem transgredisse as leis deveriam ser degredados por toda vida para a ilha de São Tomé, ou do Príncipe

Teixeira critica Oliveira China como preconceituoso em seus comentários sobre os ciganos. Para China, se os ciganos vendiam escravos, estes só podiam ser roubados, da mesma forma que qualquer cavalo comercializado por um cigano. “Nunca alguém pensa que estes cavalos ou escravos podem ter sido adquiridos honestamente.

Muitos falavam que bandos arrendavam terrenos e fazendas, mas o autor da obra acha isso estranho devido suas vidas de nomadismo, ou podia ser uma estratégia para, longe dos olhos dos portugueses, terem pontos de apoio para continuarem unidos em sua antiga vida de comerciantes de animais, escravos e produtos artesanais.

Rodrigo Teixeira cita Pereira da Costa que se refere a ciganos que ganhavam seu sustento honestamente. Segundo Costa, os ciganos andavam em bandos numerosos, e aqueles que não se metiam em pilhagens e em certos negócios, se dedicavam ao trabalho de caldeireiros ambulantes. Onde chegavam levantavam suas tendas e saíam à procura de trabalho, como consertos de objetos de latão e cobre. As mulheres, astutas e loquazes iam pedir esmolas e liam a “buena dicha” pelas linhas das mãos.

A maior aceitação e valorização romântica da comunidade cigana, ao menos no Rio de Janeiro, se deu durante a permanência da Corte Portuguesa no Brasil. Esse povo vivia em pleno florescimento econômico e artístico. Muitos tiveram o ofício de meirinho como atração. Houve época em que quase todos os oficiais de justiça do fórum do Rio de Janeiro eram ciganos, de tez morena bronzeada e os olhos garços.

O linguista Raul Pederneiras relata que “tivemos aqui um quarteirão habitado por ciganos, quando eu era estudante do D. Pedro II. A rua principal era da Constituição, que o povo denominava de Rua dos Ciganos”. Entre os comerciantes de escravos, um tal de José Rabelo foi o que mais se destacou. Contam que ele morava em casa própria no Campo de Santana (Praça da República), que virou um bairro boêmio de vida noturna alegre. Ali foi cenário para as divertidas noites do príncipe. Mais para o Rocio vivia um casal de artistas famosos, João Evangelista da Costa e a Ludovina.

Diz a lenda que Rabelo guardava boa parte da fortuna em barras de ouro no forro da residência. Tamanho o peso que ele teve que escorar o teto com colunas de ferro. Rabelo, que chegou a ganhar patente de sargento-mor do 3º regimento de milícias da corte, com certeza aplicava seu dinheiro em operações bancárias. Mesmo ricos, ainda eram considerados ladrões e trapaceiros. Chamar um homem cigano de zíngaro é o mesmo de velhaco.

Ressalta o autor que o mesmo José Rabelo, ou Joaquim Antônio Rabelo patrocinava danças e homenagens ciganas por ocasião dos desposórios de D. Pedro I com a princesa Leopoldina, em 1813. Os ciganos também participaram das festividades de casamento da princesa da Beira, filha mais velha de D. João VI, com o infante da Espanha, em 1810, dançando o fandango espanhol em que os homens entravam na praça a cavalo com as mulheres na garupa.

Ao Campo dos Ciganos

Testemunhos da época narram que, quando se comemorou a elevação do Brasil a Reino de Portugal, em 1815, D. João VI levou a corte inteira e a delegação estrangeira ao Campo dos Ciganos para uma tarde e noite de danças. Em 1918, os ciganos, homens e mulheres, foram novamente convidados pelo príncipe D. Pedro I, para apresentação de suas danças e músicas. Tudo quanto exibiram de ornato era veludo e ouro. Era o oposto do avô D. João V que acorrentou várias famílias e as enviou para o Brasil.

Depois da independência, afluíram para o Brasil vários naturalistas, visando pesquisar a flora e a fauna, mas passaram a se interessar pela população. O discurso científico, ao conceito de ser nacional, teve seu marco no ano de 1838, quando foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Em meados do século XIX, o Império elegeu o indígena como símbolo, introduzindo o discurso de que a miscigenação entre branco, negro e índio promoveria o patriotismo e consolidaria a nação. Com isso, a presença dos ciganos na composição foi omitida. Eles foram colocados à margem da chamada “boa sociedade. O que veio depois, foi uma série de medidas repressivas, fechando o cerco contra os ciganos.

Em um de seus capítulos, Rodrigo Teixeira descreve a situação dos ciganos no Brasil no século XIX, quando os grupos mais sedentários estavam na Bahia e no Rio de Janeiro, ou seja, nos dois portos marítimos mais importantes da época. Pesquisadores estimam que existiam, no mínimo, quatro a sete mil ciganos no Brasil nas décadas precedendo a independência.

Dentre os bandos, falam que existia um velho cigano descendente de outros vindos de Portugal, em 1718. Logo que desembarcaram no Rio de Janeiro alojaram-se em barracas no Campo dos Ciganos, enorme praça que se estendia da Rua do Cano até a Barreira do Senado. Trabalhavam com metais como caldeireiros, ferreiros, latoeiros e ourives. As mulheres rezavam de quebranto e liam a sina.

Muitos se vestiam como brasileiros, mas usavam cabelos e barbas cumpridas. Possuíam escravos, cavalos e cargueiros. Saint Hilaire, em 1819, fala desse grupo, em Urussanga (São Paulo) que passou o dia todo tentando fazer barganha com tropeiros. Em tom de caçoada, falei daquilo de que são acusados (trapaceiros). Um deles respondeu que todos que negociam com eles procuram fazer o mesmo. “A única diferença que entre nós existe é que esta gente solta grandes berros quando se vê lograda, e eu quando me ludibriam nada digo a quem quer que seja”.

O preconceituoso viajante francês Freycinet diz que eles são ociosos, falsos e mentirosos, e que furtam quando podem ao comerciarem. Chega a chamá-los de sutis contrabandistas. Com a família real, em 1808, vieram também milhares de portugueses e poucos prestavam para alguma coisa. Eram fidalgos e vadios, segundo historiadores. Aos primeiros, mandou-se dar pensões do tesouro. Os segundo foram empregados nas repartições que se criaram para esse fim. Tudo indica que entre esses vadios encontravam-se ciganos, contemplados com cargos vitalícios e hereditários de oficial de justiça.

Mesmo assim, a atividade econômica principal dos ciganos parece ter sido o comércio ambulante, de animais, escravos, ou objetos viajando pelos sertões. O viajante inglês Henry Koster, que esteve em Pernambuco, cita que bandos de ciganos tinham o hábito de aparecer, uma vez por ano, na aldeia de Pasmado e em outras paragens do Nordeste. “Vão errando, de lugar em lugar, em grupos de homens, mulheres e crianças, permutando, comprando e vendendo cavalos e ninharias de ouro e prata. As mulheres viajam a cavalo sentadas entre os cestos dos animais e os meninos são postos dentro deles. É sabido que jamais casam foram da sua nação”.

No entanto, o autor faz uma ressalva de que Koster morou durante anos no litoral pernambucano e fez viagens para o interior, mas, mesmo assim, confessou nunca ter tido contato pessoal com ciganos, o que faz supor que eles não viviam mais nesse litoral nordestino, e que os ciganos eram raros no interior, ou talvez nem existissem por causa das perseguições constantes.