O autor da obra, Rodrigo Correia Teixeira, desmistifica o estigma da visão estereotipada dos ciganos como sujos, embusteiros, baderneiros, trapaceiros e preguiçosos. Eram vítimas de uma sociedade segregacionista. Nascer cigano era ter seu destino marcado do lado oposto da “boa sociedade”. Sempre foram prejulgados, inclusive por crimes não cometidos, como de ladrões, assassinos, salteadores e até sequestradores de crianças.

Perseguidos por D. João V, de Portugal, muitas das vezes condenados injustamente, eram embarcados para o Brasil Colônia, mas até certo ponto bem aceitos na corte de D. João VI e no primeiro Império, como artistas dançarinos, músicos e circenses. Muitos ficaram ricos como negociantes de escravos, mas suas atividades mais fortes eram no ramo do comércio de cavalos, bestas e a prática da “buena dicha” (leitura das mãos), no caso das mulheres.

Caminhos inóspitos e as correrias

Afirma o escritor, na conclusão do seu livro, que, “como nômades ou sedentarizados, perambulavam por caminhos inóspitos, acampavam em áreas pouco propícias e se estabeleciam em espaços insalubres nas cidades”, como é o caso do Campo de Santana, ou Rua dos Ciganos (Constituição – Praça da República, no Rio de Janeiro).

Destaca que “a sobrevivência foi a realização mais duradoura, o grande evento da história cigana”. Ele cita Angus Fraser, como maior historiador sobre o assunto, quando diz que, quando se consideram as vicissitudes que eles encontraram, deve-se concluir que a sua principal façanha foi a de ter sobrevivido”. Teixeira acrescenta que “o universo cigano, mais que de duplicidade, é repleto de multiplicidades, entre as quais estão as relações com os não-ciganos, as identidades dos grupos e as imagens que se formaram dos ciganos”.

Fraser critica os que fizeram história para destruir a diversidade cigana. “Eram vistos como de natureza perigosa, uma encarnação da imoralidade”. Já o autor, que viajou em sua pesquisa desde o Brasil Colônia ao século XIX, declara que o discurso oitocentista projetava uma sociedade sem conflito e sem mudança cultural que não fosse o progresso de criação do “ser brasileiro”, como estratégia para o controle da população.

Mesmo diante de tantas discriminações, segundo o escritor, eles se adaptaram, penetrando nas lacunas que a economia criava, como grande trunfo. A solução das autoridades políticas, através das posturas municipais, era expulsar os bandos de ciganos de uma cidade para outra, de província em província, como ocorria entre Bahia e Minas Gerais e vice-versa. Na verdade, eles viviam em correrias. As municipalidades usavam seus códigos de posturas e, uma vez burlados, partia-se para a violência e perseguição dos bandos, provocando pânicos. Assim surgiram as correrias, com sangramentos e tiroteios.

Sobre suas origens

O estudo de Rodrigo Teixeira é uma versão modificada da sua dissertação de mestrado em História “Correrias de ciganos pelo território mineiro (1808-1903)”, defendida em 1998 na Fafich/UFMG. De acordo com ele, não existe uma precisão sobre as origens dessa gente. Dizem terem vindo da Ásia onde os atos de trapaçarias e malandragens não eram considerados crimes.

Esse povo terminou penetrando na Europa Central e nos Balcãs com a denominação de Rom (majoritários), de Romani (portadores da verdadeira língua cigana), ou Roma no plural. O Rom é subdividido em natsia (nação), Kalderash (mais autênticos e nobres), Matchuara, Lovara e Tchurara. Alguns estudiosos consideram esse grupo como verdadeiros ciganos. Existiam ainda os Macwaia, mais sedentários. Os Rudari, provenientes da Romênia onde muitos foram escravos.

O grupo é dos Senti (Manouch), expressivos na Alemanha, Itália e França. Vieram para o Brasil no final do século XIX. Os Calon, de língua Caló, são originários da Península Ibérica (Espanha e Portugal) e migaram para países europeus e das Américas. Muitos deles eram fabricantes e consertadores de caldeiras, alambiques e outros utensílios de cobre, zinco e latão, mas o forte era o negócio de cavalos e bestas, bem como outras bugigangas, ouro e bijuterias. Chegaram ao Brasil deportados de Portugal desde o século XVI. Todos eles foram perseguidos por serem diferenciados da sociedade e viverem livres das normas impostas pela sociedade.

Degredados de Portugal e como imigrantes

No reinado de D. João V, de Portugal, milhares de calons presos e acusados por crimes (muitos não cometidos) foram forçados a virem para o Brasil e colônias portuguesas africanas, como Angola e Moçambique. Espertos, muitos driblaram as ordens de irem para África e entraram em navios com destino ao Brasil. Já os Rom chegaram em nosso pais no final do século XIX, misturados com os imigrantes italianos, poloneses, alemães e até russos. Aqui eles arrumavam um jeito de se confundir como imigrantes e até mudavam seus nomes.

“Cada cigano tem uma forte identificação com seu grupo familiar, ou com as famílias que têm o mesmo ofício”. Para o autor, “cada cigano é portador de um conjunto singular de elementos dessa identidade, embora não haja uma noção de individualidade tal como no mundo ocidental”. Tais diferenças não impediam que houvesse solidariedade, um fator de fortalecimento. É difícil calcular a população de ciganos brasileiros. Conforme dados oficiais, de 1819 a 1959, migraram para o Brasil 5,3 milhões de europeus. No desembarque registrava-se apenas a nacionalidade do imigrante.

“Amaldiçoados”

Historiadores apontam também os ciganos como de origem grega, e até eles próprios falavam ter vindos do Egito e do Oriente Médio. Quanto ao aspecto de serem tipicamente nômades, os ciganos chegam a contar um tipo de lenda de que foram amaldiçoados a andarem perdidos pelo mundo porque um bando não acolheu Maria, José e o menino Jesus em suas tendas quando a Família Sagrada fugia para o Egito.

Em termos de comportamento e posição ideológica, os ciganos estão mais para anarquistas pelo próprio desregramento contra as leis, e por terem seus próprios hábitos e costumes. Para a Igreja Católica, eles são pagãos e vivem em concubinato porque adotam seus rituais nos casamentos e nos sepultamentos de seus irmãos. As relações deles com a sociedade nunca foram tranquilas, conforme relata o autor da obra “Ciganos no Brasil”.

Em sua pesquisa, o autor revela que a documentação conhecida indica que sua história no Brasil se iniciou em 1574, quando o cigano João Torres, sua mulher e filhos foram degredados para este país. Em Minas Gerais, sua presença é mais notada a partir de 1718, quando chegam da Bahia para onde eles haviam sido enviados de Portugal. No século XIX, só se falava de ciganos quando suas presenças inquietavam as autoridades, com acusações de roubar cavalos. Os chefes de polícia os viam como perturbadores da ordem. Outros recorriam aos estereótipos mais comuns como “sujos”, “trapaceiros” e “ladrões, Eram sinônimos de barbárie, desonestidade e imoralidade.

Confrontos com a polícia

No final do século XIX e início do XX, “ocorreu o ápice dos confrontos entre a polícia e os ciganos”. Foram os chamados tempos das “correrias de ciganos”, empurrados de um lugar para o outro. Rodrigo Teixeira cita o Padre Raphael Bluteau, autor do primeiro dicionário da língua portuguesa, editado em Portugal, o que nos dá uma nítida compreensão das preocupações da Igreja quanto ao comportamento herege dos ciganos no início do século XVIII.

Para o Padre, ciganos eram nomes dados a uns homens vagabundos e embusteiros que se fingem naturais do Egito e obrigados a peregrinar pelo mundo porque se recusaram a agasalhar o Divino Infante. Um século depois de sua publicação, o dicionário passou a ser editado sobre a direção do brasileiro Antônio de Moraes Filho, que define ciganos com gente vagabunda, que diz ter vindo do Egito, conhecedores do futuro pelas raias, ou linhas da mão.

Na Corte do Rio

A instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, segundo o escritor do livro, proporcionou a ascensão socioeconômica dos ciganos, principalmente dos comerciantes de escravos de segunda mão. Em Minas Gerais, tiveram seus momentos de expansão nesse tipo de comércio, mas não tiveram o prestígio e riqueza dos seus congêneres cariocas.

Em 1798, a população escrava representava 48,7% do total populacional. Isso dá uma ideia da importância do mercado. No Rio, os ciganos se estabeleceram no Campo de Santana. Eles perceberam que o comércio de escravos de segunda mão para planteis menores não atraia os grandes comerciantes, preocupados apenas com as importações. Eles entraram justamente nesta brecha da revenda, o que significa que tinham visão empreendedora.

Além dos mercados da Rua do Valongo, os ciganos vendiam os escravos por várias partes do interior do país, especialmente em Minas Gerais, o que proporcionou uma valorização social para sua gente, já que exerciam uma atividade reconhecida como útil. Alguns deles tornaram pessoas ilustres, patrocinando festividades na Corte. Esse momento, na ótica do autor, coincidiu com a ascensão do movimento romântico na Europa que refletia aqui a visão de que o cigano era a encarnação dos ideais da vida livre e integrada à natureza.

Momentos de queda

Em fins da década de 1820, esse momento de prestígio para os ciganos começou a ruir com os movimentos políticos pela independência. Somaram a isso os golpes contra o escravismo, como 1850 (fim do tráfico internacional), 1871(ventre livre) e abolição em 1888. Surgiram também as ideias de modernização e civilização dos costumes junto às elites brasileiras, que pretenderam estabelecer o reordenamento físico das cidades (higienização e exclusão de indivíduos dos centros urbanos que estivessem fora da ordem).

A partir daí, começou a repressão às populações marginalizadas, entre elas os ciganos, vistos como ameaças. A expulsão deles das cidades passa a integrar o projeto “civilizador” das autoridades imperiais. O comércio escravista foi debilitado, e os ciganos, então, começaram a focar nas transações de cavalos e mulas. Em 1972, a população escrava era apenas 15,2% do total. Depois da abolição, eles se tornaram miseráveis e tiveram que se virar para sobreviver.

Entre o período Imperial e a República, ocorreram inúmeras diligências policiais no encalço de bandos de ciganos em Minas Gerais, resultando em sangrentos confrontos. Os anos de maiores perseguições relatadas pela imprensa e ocorrências policiais foram 1892 e 1897, bem como 1909, 1912, 1916 e 1917.

Assinala o autor que, desde o século XV a palavra “cigano” é utilizada como insulto. O termo aparece pela primeira vez em “A Farsa das Ciganas”, de Gil Vicente, em 1521. Nessa peça, eles aparecem como originários da Grécia. Outra versão na Europa foi de que eles vieram do subcontinente indiano. No Brasil, muitos se diziam descendentes dos antigos egípcios.

Algumas vezes são chamados de turcos, como no “O Pharol”, de Juiz de Fora, classificados como pedintes mendigos e pessoas desconhecidas e suspeitas. Só porque realizavam trocas e compras de animais, as mercadorias eram relacionadas como roubadas