No sol escaldante, na chuva ou na lama com sua cangalha, lá estava ele com meu pai transportando mandioca da roça para o processamento, sacos de farinha, feijão e milho para as feiras da cidade de Piritiba e o distrito de Andaraí. Eu ainda era menino e, mesmo assim, nós três éramos colegas inseparáveis de trabalho. Poucas vezes reclamava do peso e do cansaço, só era meio atrevido e, às vezes, fujão.

Nunca imaginava na triste sina da sua raça, de que um dia seria abatido em frigoríficos da Bahia e do Nordeste, e que seu escalpo e sua carne seriam vendidos para os chineses. Sua pele é aproveitada para produção de um tal Ejiao, uma gelatina usada na medicina e em cosméticos chineses, que movimentou o equivalente a 22 bilhões de reais em 2018. A carne, de acordo com reportagem de Alexandre Guzanshe, produzida pela WideAvenues em parceria com a Repórter Brasil (Joana Suarez), é um subproduto consumido no norte da China.

“DESENVOLVIMENTISTA”

Triste sina do nosso jumento, do jegue ou asno da espécie asinina, trazido para o Brasil pelos portugueses há 500 anos, e que se adaptou muito bem no semiárido nordestino, sendo o sustento e o braço forte do catingueiro e do sertanejo, principalmente nos tempos mais difíceis das secas, bem antes do aparecimento do ronco dos “gafanhotos motorizados” (as motos) que tomaram conta das cidades, das estradas e veredas da zona rural.

Esse símbolo nordestino, que está em extinção, é personagem histórica do Novo Testamento na travessia da Família Sagrada pelo deserto da Palestina ao Egito, para salvar o menino Jesus de uma perseguição. Aqui no Brasil, foi tema do filme “O Pagador de Promessa”, premiado no Festival de Canes na década de 60. O “Zé do Burro” fez de tudo e foi humilhado para pagar a sua promessa que fez à santa que salvou seu jumento de um raio.

O nosso jegue de carga, ou o nosso colega, morreu de velho, naturalmente, no pasto, mas não foi para o abate como era o destino de muitos que pereceram cruelmente num frigorífico lá em Senhor do Bonfim, na Bahia, há mais de 50 anos. Portanto, a prática da matança não é de hoje.

Lembro que meu pai escorraçou um sujeito malvado atravessador que queria levar o mano de trabalho para o escalpo macabro. “O meu morre no pasto, seu cabra assassino de jumentos” – bradou o meu pai, com muita raiva e revolta.  “Isto é o fim do mundo”

O símbolo do trabalho pesado no interior nordestino é “o maior desenvolvimentistas do sertão” – assim cantou o rei do Baião, Luiz Gonzaga. Como narra a reportagem, financiada por uma bolsa da The DonkeySanctuary, uma Ong britânica dedicada a promover o bem-estar dos jumentos, eles são populares na região do sisal (Cansanção, Euclides da Cunha, Serrinha e Valente). Foram eles os responsáveis por transformar Valente em capital do sisal. Eles carregam a folhas até a máquina de processamento, e dali até o varal onde os fios secam.

Estão também ajudando o homem do campo na labuta de outras culturas de subsistência, como da mandioca, do feijão, do milho e da mamona, O professor de veterinária da USP, Adroaldo José Zanella está tentando implementar estratégias de bem-estar dos jegues. Ele acha que um animal que está aqui há 500 anos não pode acabar em cinco.

UM ACORDO ESQUISITO E OS ATRAVESSADORES

A China não atende sozinha a demanda de criar 10 milhões de jumentos por ano para o abate, por isso importa esses animais de países da África e da América do Sul, principalmente o Brasil, num acordo esquisito. Aqui não tem nenhuma estrutura para aumentar a produção, e o destino do jegue é se acabar em pouco tempo.

Existe um “faroeste” na cadeia de atravessadores de asininos no Nordeste para o mercado chinês, conforme constatou a reportagem de Alexandre e da Repórter Brasil. Eles percorreram quase três mil quilômetros no sudoeste da Bahia e só avistaram 15 jumentos. Milhares estão sendo submetidos a condições degradantes e abatidos nos frigoríficos de Simões Filho (Cabra Forte), Amargosa (Frinordeste) e Itapetinga (Frigorífico Regional Sudoeste). Devido aos maus tratos houve uma liminar judicial proibindo o abate, mas retornaram às atividades.

O interesse dos estrangeiros pelo negócio foi uma surpresa até para as autoridades brasileiras numa viagem à Ásia em 2015. Os chineses querem um milhão de jumentos por ano. Não existe uma contabilidade precisa, mas o IBGE estimou, em 2012, um contingente de cerca de 900 mil animais, sendo 97% no Nordeste. Em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro para a China, com a meta de enviar 200 mil unidades por ano.

Aleandre Guanshe conta que parte da Fazenda Santa Isabel, em Euclides da Cunha foi arrendada pelos chineses. Em pouco mais de um ano, mais de 100 mil jumentos foram mortos nos três frigoríficos da Bahia, mas existem abatedouros em outros etados. A redução drástica ocorre porque sua cadeia é extrativista. Além de não existir normas de criação, não há fiscalização do transporte, nem contagem mais recente da sua população.

A reportagem apontou seis atravessadores, como o sertanejo que vende o animal solto ou do quintal por 20 e até 50 reais, ou doa; o pequeno comerciante que junta um grupo de jegues para revende-los a transportadores ou fazendeiros por até 100 reais a estrangeiros (na feira vale até 300);  transportadores que levam o jumento até as fazendas baianas habilitadas (o abete se intensificou em 2017, e muitas propriedades se cadastraram na Adab –Agência de Defesa Agropecuária da Bahia); caminhoneiros que recebem em média 240 reais por animal abatido; e companhias de logística do Vietnã e Hong Kong que compram a carga de frigoríficos por 300 e 400 reais cada animal. Segundo informações apuradas, as cargas chegam aos portos asiáticos por contrabando.

ENTREPOSTOS

Essas fazendas funcionam como entrepostos para animais trazidos de municípios baianos e de outros estados do Nordeste. Para trafegar, o motorista precisa da Guia de Trânsito Animal (GTA). Na prática, a maioria viaja sem a permissão, trafegando à noite através de desvios. Uma dessas fazendas habilitadas é a de Herynaldo Marinho, em Teofilândia, que está entre as 12 fornecedoras para o frigorífico Cabra Forte, em Simões Filho. Outra é a fazenda Piedade que apenas abriga os animais, com documento forjado.

Na China uma peça de pele de jumento é comprada por até quatro mil dólares (16 mil reais), enquanto uma caixa de Ejiao custa entre 186 a 750 dólares. De acordo com cálculos aproximados, o comércio de jumentos gerou em pouco mais de um ano uma receita bruta em torno de 45 milhões de reais aos frigoríficos da Bahia (últimos atravessadores brasileiros).

BRINDE E MAUS TRATOS

Para Sônia Martins Teodoro, representante da Ong Animais de Itapetinga, os jumentos estão indo de brinde para os chineses que importam do Brasil grandes quantidades de bovinos rendendo bilhões de dólares. Segundo ela, o acordo foi um agrado do governo brasileiro para atrair investimentos.

Itapetinga, na Bahia, foi o município que mais protagonizou as cenas de maus tratos em 2018. Numa fazenda, mais de 800 jegues viviam caídos ao solo, com fome e sede, e outros 200 foram encontrados mortos. Houve manifestações contra as matanças, inclusive no Farol da Barra, em Salvador. “Era uma coisa terrível, nunca vista aqui” – comentou na época o delegado de Itapetinga, Irineu Andrade, que indiciou os responsáveis por crimes de maus trato e poluição do rio. Dias depois, outra fazenda foi interdita, e em Euclides da Cunha surgiram mais denúncias contra a fazenda Santa Isabel.

Em novembro de 2018, a Justiça da Bahia proibiu o abate, mas uma pressão empresarial derrubou a liminar, e em setembro do ano passado os frigoríficos foram liberados a voltaram às suas atividades. O Ministério da Agricultura mostrou-se contra a proibição do abate, por se tratar de uma alternativa econômica. A Frente Nacional de Defesa dos Jumentos vem se mobiliando para combater os maus tratos, e cuida de 200 animais sobreviventes para serem doados a reservas ecológicas.