Pelos conceitos filosóficos materialistas de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) jamais o socialismo pregado por eles seria introduzido num país tão agrário e atrasado como na Rússia tzarista, sem o nível de consciência política e luta de classe como já existia em algumas nações da Europa Ocidental como Alemanha, Inglaterra e França.

Contrariando as teorias desses estudiosos, há cem anos (17 de outubro de 1917) estourou na Rússia uma revolução que sacudiu o mundo em plena I Guerra Mundial, influenciando depois outras revoluções com as mesma pegadas ideológicas na China (1949) e em Cuba, na América Latina, em 1959.

No Dia Internacional da Mulher de 1917, 23 de fevereiro no calendário juliano, a greve mais importante da história mundial começou com mulheres do setor têxtil em Petrogrado, conforme escreveu o historiador norte-americano Kevin Murphy, professor da Universidade de Massachusetts. As greves logo se generalizaram pelas cidades.

Enquanto os maridos lutavam no front da guerra, as mulheres trabalhavam 13 horas por dia num frio abaixo de zero grau em condições subumanas, tudo isso num regime brutal do tzarista que perdurava por séculos. Antes disso, os trabalhadores já tinham dado um grande exemplo ao mundo de auto-organização e poder, através dos sovietes, nos movimentos de 1905.

Diante de uma crise econômica e social profunda o regime tzarista não resistiu em 1917. Nicolau II foi obrigado a ceder, dando lugar a um governo constituído por socialistas revolucionários, cadetes e mencheviques que eram minoria.

De longe do seu exílio na Suíça, Vladimir Ilitch Lenin escrevia suas cartas em tom de manifesto dando suas impressões sobre os movimentos na Rússia e distribuía tarefas aos camaradas bolcheviques na luta de tomada do poder. No auge das greves tomou um trem blindado com destino à Estação da Finlândia e de lá para Petrogrado.

AS LUTAS REVOLUCIONÁRIAS

A Rússia começou a se agigantar a partir do século XVII com a dinastia dos Ramanov. Fortaleceu-se com Pedro, o Grande, no início do século XVIII. No seu trabalho “As Revoluções Russas e o Socialismo Soviético”, o professor e pesquisador Daniel Aarão Reis Filho descreveu sobre o império tzarista no final do século XIX quando era o maior Estado do mundo em tamanho (potência imperial), com população estimada de 132 milhões de habitantes (85% agrária vivendo em estado de miséria). Seu império chegava até ao Alaska, hoje dos Estados Unidos.

Toda burocracia de 500 mil funcionários era exercida pela polícia política, criada no reino de Nicolau I, entre 1825 – 1855, considerado responsável por todo atraso e repressão na Rússia. Mesmo no período imperial, onde predominava a tirania, a Rússia atravessou várias revoltas encabeçadas pelos jovens estudantes e camponeses, que exigiam reformas.

Por volta de 1865 a 1890, mudanças políticas e sociais abriram novos horizontes por onde transitaram diferentes lideranças. Nesse período, segundo o estudioso, houve uma explosão demográfica em torno de 156%. De 1890 a 1913 mais 145%. O salto foi de 75 milhões para 171 milhões. Foi também uma época de grande crescimento econômico, ajudado pelos investimentos da França, Bélgica, Inglaterra e Alemanha.

No início do século XX, São Petesburgo já tinha mais de um milhão de habitantes.  Moscou seguia o mesmo ritmo, com 1,0 milhão. Moravam na Polônia russa, Varsóvia, 640 mil almas e 400 mil, em Odessa, na Ucrânia. Pequenas cidades surgiam do nada, com 50 a 100 mil pessoas. Nos centros urbanos, a classe operária experimentou um significativo crescimento, passando de 1,5 milhões para 2,4 milhões entre 1890 a 1900. Cerca de 12 milhões passou a viver em torno dos setores industriais.

Mesmo assim, as características das cidades eram agrárias, com o povo vivendo em estado precário. Apesar do comércio de alimentos para outras nações, devido ao avanço efetuado com grandes culturas de exportação, a população russa passava fome.

Como dizia o revolucionário Trotski, era um desenvolvimento desigual e combinado. As famílias ricas se confraternizavam nos bailes luxuosos e cintilantes de cristais. Na cultura, o país exibia o que tinha de melhor com A. Tchekhov, V. Maiakovski, L. Tolstoi, F. Dostoievski, entre outros. Progresso e atraso eram as duas faces que não combinavam. Sobre essa mistura contraditória, os mais letrados previam que a “alquimia” poderia gerar explosões imprevisíveis.

No final do século XIX, por volta de 1879, como já se esperava, a corrente social-democrática se dividiu. Era o prenúncio do que viria depois a se chamar de Bolcheviques e Mencheviques. Uma facção de militantes, entre eles G. Plekhanov e P. Axelrod, passou a defender um trabalho, em longo prazo, de conscientização política das comunidades. Essas cabeças pensantes foram logo reprimidas e exiladas. Enquanto ficaram fora, começaram a estudar as teorias de Marx e Engels. Nos anos 80 e 90 do século XIX, foi Plekhanov quem mais encarnou a ortodoxia marxista na Rússia.

Apesar das derrotas políticas, esses grupos formados nas cidades e em centros rurais criaram, em 1902, o Partido Socialista Revolucionário, reunindo militantes históricos que pregavam a criação de uma Assembleia Constituinte.

Em 1904, um outro grupo oposto, mais da burguesia, criou o Partido União da Liberdade, também comprometido com a convocação de uma Assembleia, mas com cara populista. Seus membros eram chamados de filhos das reformas e dos surtos desenvolvimentistas. Chegaram até a se aproximar de Marx, em razão da sua dura crítica ao capitalismo. Conforme aponta o professor da Unesp, Daniel Reis Filho, foi, inclusive, o populista Natanson que traduziu, pela primeira vez, o livro “O Capital” para a língua russa.

Apesar disso, eram os socialistas que encontravam mais eco na sociedade, em razão dos seus ideais comunitários e igualitários. Marx, porém, não acreditava que uma Rússia atrasada e agrária pudesse acolher o socialismo pregado por ele. Mas, na sua avaliação dialética, uma revolução russa só seria possível com a vitória do proletariado internacional.

Populistas e marxistas sempre demarcaram campos opostos dentro das teses revolucionárias. Os primeiros viam os marxistas como uma versão ocidental arrogante, fantasiados de revolucionários. Já os marxistas de Plekhanov chamavam os populistas de socialistas utópicos, atrasados, anacrônicos e reacionários.

Os marxistas criaram o Grupo Emancipação do Trabalho (Plekhanov), em aliança com intelectuais de antigas lutas que já haviam experimentado exílios e prisões, como Vladimir Ilitch Ulianov, Martov e Potresov. Logo cedo, Vladimir Ulianov se destacou como liderança, passando mais tarde a ser conhecido como Lênin.

Por questão de segurança, devido a repressão, um novo Congresso foi realizado em Bruxelas com 51 delegados, em 1903. Mesmo assim, em razão de problemas com a polícia, o evento clandestino teve de ser encerrado em Londres. Naquele célebre Congresso, houve divergências de posições entre Lênin e Martov quanto à filiação na organização.

Venceu a ideia de Martov que propôs a filiação de todos que concordassem com o programa político. Lênin, por sua vez, preferia uma organização de profissionais disponíveis para as tarefas revolucionárias e devotados à ação política de enfrentamento da repressão tzarista. Como sempre acontece nas esquerdas, os ânimos se acirraram e houve cisões. Muitos se retiraram do Congresso. Lênin ficou com 24 votos contra 19 de Martov. Depois do evento, ocorreram novos rachas, modificando a correlação de forças, com denúncias de ambos os lados.

BOLCHEVIQUES E MENCHEVIQUES

( Stalin –  ardiloso, gangster e violento)  

Assim nasceu a Revolução Russa, dividida entre seus correligionários. De um lado Lênin e seu grupo decididos a romper as barreiras, que passariam à história com o nome de Bolcheviques, ou Bol´chinstvo – maioria, embora nem sempre majoritários nos Congressos (eram mais organizados e práticos).

Do outro lado, os partidários de Martov ganharam a alcunha de Mencheviques, de Men´chinstvo (minoria) e eram mais moderados. Viveram sempre separados, brigando e se acusando. Rolavam traições, armadilhas, espionagens e assassinatos. Mesmo com métodos diferentes, todos lutavam para derrubar o tzarismo.

Embora não fosse ainda destaque e conhecido nos movimentos políticos, Stálin (Ióssif Vissariónovich Djugachvíli), desde o início da primeira década de 1900, já era um revolucionário independente no seu jeito bruto em sua terra Góri, na Geórgia, praticando o que chamamos de luta armada através de assaltos a bancos e ações terroristas, para arrecadar fundos para o partido.

Conheceu Lênin pela primeira vez em Londres, no Congresso dos Bolcheviques, e ficou ao seu lado, embora com algumas discordâncias. Apesar de ser um gangster, bagunceiro, pistoleiro, rústico e violento, a vida de Stálin foi uma lenda viva na Rússia, antes e depois da Revolução. Conseguiu sobreviver às piores ameaças de morte. Fugiu de prisões, inclusive dos confinamentos gelados da Sibéria. Matava, impiedosamente, quem impedia o seu caminho. Era tido como o homem que fazia o trabalho sujo de Lênin, inclusive contrariando normas do partido.

Perseguido pela repressão do tzar, Stálin se refugiou em muitas terras, matando e praticando, desde jovem (final do século XIX), terríveis atrocidades contra seus inimigos. Foi preso por diversas vezes, inclusive na Sibéria, mas sempre conseguia se escapar e voltar para continuar seu trabalho. Esteve presente em todas as revoluções russas, especialmente a de Outubro de 1917.

Ardiloso e traidor, não tinha escrúpulos em fazer o jogo sujo e criminoso, como na morte do seu companheiro Lênin, em 1924, quando esmagou seus inimigos e correligionários, para galgar o poder. Ocupou o cargo maior na Rússia com tirania e mão-de- ferro, usando sempre a eliminação sumária contra quem passasse sua frente.

A GRANDE REVOLUÇÃO DE 1905

A guerra da Rússia contra o Japão, em 1904, foi um desastre, piorando a situação interna do império e abrindo campo para os revolucionários. A saída foi o tzar dar concessões aos movimentos sociais e assinar um acordo de paz. Pela primeira vez, permitia-se alguma liberdade de expressão, organização partidária e a convocação de uma assembleia (a Duma).

Na verdade, tudo não passou de uma enganação política do tzar para ganhar tempo. Os sovietes, então, se reuniram; convocaram os trabalhadores, e foram ao confronto, em 1905. Nos embates, foram massacrados e presos. O poder foi mais forte, e só em Moscou mil pessoas foram barbaramente mortas. A tragédia não intimidou as revoltas.

Até 1905, não havia liberdade de manifestação no país, mas, mesmo assim, existiam forças sociais e políticas se deslocando de seus esconderijos internos e externos para vários lugares na calada das noites geladas. As conspirações não paravam. Lênin era incansável.

A primeira grande Revolução Russa se deu em 1905, mas as divisões entre os grupos sociais de diversas correntes impediram sua consolidação. Apesar da derrota, várias reformas políticas e sociais foram conquistadas pelo movimento. De acordo com os historiadores, a Revolução de 1905 foi o prólogo da de 1917.

Conforme consta, a de 1905 começou num domingo de inverno de 9 de janeiro. Num grande manifesto, o povo pediu justiça e mudanças nas condições trabalhistas, como jornada de trabalho (oito horas), salário mínimo, eleições, assembleia, liberdades políticas e sindicais, entre outras reivindicações. De forma brutal, a tropa do tzar disparou contra a população em protesto, fazendo dezenas de mortes.

Depois dessa turbulência, as lideranças se organizaram em conselhos, que passaram a ser denominados de sovietes, conseguindo enorme sucesso. Esses conselhos se transformaram num poder paralelo, reunindo camadas médias e liberais que pediram uma Assembleia Constituinte. Nos campos, também houve convulsões sociais e invasões de terras, criando-se, em maio, a União Pan-Russa de Camponeses. Soldados se rebelaram em um motim. Mesmo assim, o Antigo Regime continuava agarrado aos seus privilégios e às suas tradições absolutistas.

O tzar impôs limites à Assembleia, com direitos de dissolvê-la quando entendesse. Os deputados representantes da Duma foram eleitos pelo voto indireto. Na primeira Duma, o Parlamento foi dissolvido, e a segunda teve pouca duração. A terceira se apresentou com ampla maioria de conservadores e durou de 1907 a 1912. A quarta Duma iniciou às vésperas da Primeira Guerra e se estendeu até 1917.

Os conflitos se acentuaram e, com isso, chegou a haver uma reunificação das tendências (bolchevique e menchevique) no IV Congresso de Estocolmo (1906), mas a união durou pouco tempo. A repressão política aos movimentos sociais era brutal, culminando com o massacre dos mineiros do rio Lena, em 1912, com duzentas mortes.

Para complicar a situação que já era conturbada, existia ainda a luta interna entre as diferentes correntes de pensamento, como entre Trotski, Lênin e Rosa Luxemburgo. Trotski dava ênfase ao papel do proletariado industrial, enquanto Lênin destacava a importância do campesinato na estruturação da ditadura revolucionária. Do outro lado, Rosa Luxemburgo acusava Lênin de desvios nacionalistas.

A entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial pareceu a Lênin ser um presente do tzar, mas no início percebeu que estava errado. O país foi arrebatado pela fúria da defesa da pátria e não era isso que queriam os revolucionários.

Entretanto, entre 1915/16, a Rússia entrou em profunda crise de abastecimento de alimentos e inflação alta, reativando os movimentos grevistas, sem contar as denúncias de descalabros contra a família imperial, associada à figura de Rasputin.