Blog Refletor TAL-Televisión América

O poeta e cineasta argentino Fernando Birri, o mestre do Nuevo Cine latino-americano, celebrou na semana passada, no dia 13, seus 90 anos de idade. Ele está em Roma, onde vive há décadas, firme e risonho como sempre, com projetos a fazer, cabeça a mil. Comemorando a data, publico em mídia aberta o prefácio que fiz para seu livro O alquimista democrático, de 2008.

BIRRI, ORTU et ORG

O alquimista democrático foi escrito durante 35 anos, gravando em papel o movimento ascendente do pensamento de Fernando Birri, refletindo a passagem por suas várias juventudes. Aqui o verbo escrever ou o verbo gravar devem ser entendidos na multiplicidade de expressões de um poeta que circula pelas letras, pela oratória, pelas artes pictóricas, pelo teatro, pela dança, pelos bonecos, pelo cinema e, agora, pelas varreduras eletrônicas, por essa incipiente revolução tecno-estética que está forjando a Oitava Arte dos sonhos materializados e das realidades virtuais.

Esse compêndio é a súmula organizada de uma reflexão contínua e fervente, elaborada com a fala, com os gestos, com as tintas, com as câmeras, com todas as conexões que seu espírito curioso e rebelde descobriu e sua habilidade de mago de circo soube dominar, manipular, transcender. São palavras, desenhos, fotos e outras manifestações onde a fusão de poesia, teoria e ideologia não são apenas uma rima, mas também uma solução: o pensamento aberto, livre de amarras, solto no vento, abundante, excessivo (Birri cita William Blake: “o caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria”).

Ele menciona Blake ao falar sobre seu filme não-filme ORG, dedicado a Wilhelm Reich, Che Guevara e Georges Méliès, um mergulho em nossa cultura esquizofrênica em busca da superação dos contrários, do enlace dos opostos, do rompimento das falsas fronteiras. Org do grego organikós, espraiando-se por orgânico, órgão, orgasmo, orgia. O alquimista democrático é parte do universo expansivo de Birri, é um órganon, a boa palavra portuguesa que define um conjunto de requisitos lógicos servindo a uma demonstração filosófica.

Uma alquimia, por certo. Não apenas no sentido da combinação de elementos diferentes e técnicas distintas como estratégia para se alcançar objetivos. Não apenas na fixação desses objetivos, das metas dos antigos alquimistas, aqui metaforizadas — mutação material (transmutatione), remédio universal (penácea) e vida artificial (homúnculo), esses milagres a serem alcançados através da Lapide Philosophorum, a pedra filosofal.

Metaforizadas aqui e agora, por Birri, como sempre foram pelos laboratoristas místicos da Idade Média e da Renascença: estamos falando de espiritualidade, estamos falando da transformação de si próprio, da elevação humana de um estado inferior (a pedra bruta) para um estado superior de compreensão e identificação do mistério da existência (o ouro). Exercícios técnicos, artísticos e místicos de aproximação com o sagrado, a interface essencial da humanidade, razão e fanal do complexo de reflexões, ações e revelações que os antigos alquimistas, e os atuais também, definiam e definem como Opus Magna, a grande obra, a grande tarefa dos sábios transmutadores — o trabalho maior do artista.

O artista se transforma para alcançar o poder de transformar os outros, e através dos outros transformar o mundo. O poder de propor questões com e sem respostas, de açular seus semelhantes a se libertarem de si mesmos, de induzir todas as liberdades, de se entregar plenamente à sua missão transgressora, à metamorfose da vida. Metamorfosear é produzir outro ser, outra coisa. Através de labirintos de luz, o pensamento que se expande nesse livro é a construção metódica e rigorosa de utopias. Uma engenharia do sonho dialogando com as esculturas de fumaça da realidade para gerar uma descoberta, um desvelamento, uma verdade que ninguém tinha percebido, a revelação de uma essência.

O centro vital desse livro é, pois, o parto, o dar a luz, o novo que contém em si o ovo (em  latim também, novu e ovu, e também em espanhol, nuevo, huevo). Birri é mãe e parteiro ao navegar no conceito maior de sua vida de poeta: a gênese, o despertar, o aparecer por primeira vez, a força latina da palavra ortu (nascimento). Glauber Rocha dizia que “o novo é eterno”. Ou seja, Birri trabalha com o que não tem fim.

Por Orlando Senna

Comentário:

Confesso nunca li qualquer obra das escritas por Fernando Birri, muito menos assisti palestra ou o encontrei pessoalmente em qualquer lugar. A primeira vez que ouvi referencia às suas atividades foi através de Orlando, durante um dos momentos do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, no Teatro Castro Alves em Salvador Bahia, realizado no ano 2006. Mas, frente às informações deste sedutor artigo da lavra de Orlando e, como confio muito na sua capacidade, intuição e dedicação, profundo e brilhante conhecedor do que faz, vou ler as obras de Birri, principalmente, as que se referem ao Cinema e Audiovisual. E, sugiro aos que lerem esse artigo, a procederem de modo semelhante, nada perderão, só terão a ganhar!

Orlando Senna nasceu em Afrânio Peixoto, município de Lençóis Bahia. Jornalista, roteirista, escritor e cineasta, premiado nos festivais de Cannes, Figueira da Foz, Taormina, Pésaro, Havana, Porto Rico, Brasilia, Rio Cine. Entre seus filmes mais conhecidos estão Diamante Bruto e o clássico do cinema brasileiro, Iracema. Foi diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños e do Instituto Dragão do Mar, Secretário Nacional do Audiovisual (2003/2007) e Diretor Geral da Empresa Brasil de Comunicação – TV Brasil (2007/2008). Atualmente e presidente da TAL – Televisão América Latina e membro do Conselho Superior da Fundacion del Nuevo Cine Latinoamericano.

Itamar Pereira de Aguiar nasceu em Iraquara – Bahia; concluiu o Ginásio e Escola Normal em Lençóis, onde foi Diretor de Colégio do 1º e 2º graus (1974/1979); graduado em Filosofia,